O MENINO E O ANJO
O MENINO E O ANJO
A certa hora, entre três e quatro da tarde, o menino saía de casa sozinho, em dias alternados da semana, e ia sempre na direção do campo onde os seus amigos jogavam pelada. Não saía sem antes avisar a sua mãe que ia pra lá. Ele não podia ir todos os dias, por causa de suas obrigações escolares e domésticas. Era filho único e tinha dez anos. A sua mãe concordava, achando que ele ia deveras brincar com os amigos de sua idade. Como era um filho obediente e cumpridor dos seus deveres, uma raridade para uma criança de sua idade, a mãe dele não se importava que fosse brincar de bola no campo de futebol que ficava próximo de sua casa.
Dentro de casa, o menino pouco falava, a não ser quando a sua mãe lhe perguntava algo, e ele lhe respondia de modo simples e direto. Com o tempo, ela foi percebendo que ele tinha resposta pra tudo. E ficava sem entender, um tanto encabulada, com a inteligência do seu filho, com apenas dez anos. Ele dormia cedo e acordava cedo. Tinha bons hábitos. Cumpria com pontualidade as suas atividades diárias. Gostava de ir à escola e quando chegava, ao invés de descansar, tirava a farda escolar, e antes mesmo de tomar um banho pra almoçar, se ocupava em ajudar a mãe em alguma coisa, como por exemplo, a por a mesa, para que mãe e filho pudessem nutrir-se do repasto do meio-dia.
Os dois moravam numa casa modesta num bairro periférico da cidade. O menino não conheceu o seu pai. A sua mãe havia engravidado de um homem que mal o conheceu, que a levou pra morar com ele nessa casa que dizia ter comprado. Logo que ela deu à luz, ele cumpriu com as obrigações de pai e marido só nos primeiros três meses. Um certo dia, depois de deixar com ela a escritura da casa, disse-lhe que faria uma viagem, e o motivo era pra saber se algo que estava em vista, daria certo ou não. Deixou algum dinheiro pras despesas e viajou. Dez anos se passaram e ela não teve mais nenhuma notícia dele.
A mulher ficou na expectativa durante algum tempo, na esperança de que a qualquer momento, tivesse alguma notícia de seu marido, ou até mesmo que ele retornasse repentinamente ao lar que abandonou. Ela o esperou, o esperou, em vão. A verdade é que ele sumiu sem deixar rastro, porque nem a família dele, ela conhecia, que, por sua vez, tampouco a procurou, e ela ficou sem saber se a família dele sabia da existência dela ou não. O tempo passou, e ela, pra sobreviver com o filho, passou a lavar roupa de ganho e a vender doces caseiros que ela mesma os fazia.
Talvez por desilusão, ou temerosa do marido sumido a qualquer momento chegar, não quis até então, refazer a sua vida conjugal. Também não quis falar com o filho, acerca do pai que ele não o conheceu. Possa ser que, mais adiante, quando ele estiver adolescente ou adulto, caso lhe pergunte a esse respeito, ela poderá lhe explicar o que ocorreu, pelo menos até o ponto em que ele viajou e não voltou mais. No entanto, apesar da ausência do marido, que ela parecia não sentir mais falta, devido ao longo tempo de sumiço dele, e das limitações materiais, mãe e filho não demonstravam infelicidade, ao contrário, levavam uma vida simples mas repleta de amor, humildade e caridade sentimentais entre eles, gerando assim, a harmonia afetiva mútua entre duas almas que se auxiliavam, se consolavam e se serviam em tarefas espontâneas que contribuíam ao bem-estar da modesta convivência familiar.
Como numa preliminar, primeiro as crianças jogavam entre três e quatro horas da tarde. Depois, deixavam o campo para que os adolescentes mesclados com os adultos, se divertissem em peladas bem disputadas que se prolongavam até o final do entardecer. A mãe do menino, envolta em seus afazeres, não tinha tempo de dá um pulinho no campo pra observar o que o filho fazia. Também não precisava, porque ela, conhecendo-lhe a índole, sabia que o filho não fazia nada demais, apenas se divertia com os amigos de sua idade, algo muito natural.
Porém, apesar do menino não fazer algo que comprometesse a sua conduta, o que a mãe dele não sabia, os seus amigos sabiam; é que ele não jogava a pelada com eles. Desde que as crianças começaram a brincar no campo, que o menino ia pra lá, não pra jogar, mas pra ficar arredio à beira de um riacho que corria próximo dali. Os amigos até tentaram muitas vezes, convencê-lo a integrar-se ao grupo, e achavam estranho a sua atitude de ficar arredio e de costas para o campo, apenas contemplando as águas do riacho que fluíam mansas por entre pedras limosas.
Numa certa tarde, o menino saiu, como de hábito, pra brincar com os amigos no campo. A mãe ficava tranquila, porque, além de saber o que o filho fazia, que era jogar pelada com os amiguinhos, o campo ficava próximo da casa e se algo de errado ocorresse com qualquer um deles, inclusive com o seu filho, decerto alguém vinha lhe avisar. Ela passava roupa na sala da casa, quando alguém bateu na porta. Ao abri-la, se deparou com a mãe de um dos amiguinhos do seu filho, que ela a conhecia.
- Olá, boa tarde, amiga!
- Boa tarde.
- A que devo a honra de sua visita? Nunca mais nos vimos. Também, ando atarefada com as minhas coisas, as minhas obrigações, que fico sem tempo de conversar um pouco com as minhas amigas, mas sei que você também é mãe, e entende, né?!
- Sim, amiga, entendo porque também eu tenho as minhas obrigações domésticas, pra cuidar de marido, de filho, só não trabalho como você, mas entendo muito bem a sua luta diária.
- Está bem. Sente-se um pouco. Eu passei um café agora. Vou pegar um pouco pra você.
- Vou aceitar, sim. Mas a minha demora é pouca. Eu vim aqui pra lhe falar sobre um assunto que talvez você não saiba.
A mãe do menino, de repente, olhou surpresa pro semblante preocupado da amiga, e lhe indagou:
- Do que se trata? É algum problema com os nossos filhos, com algum dos seus amiguinhos?
- Calma, não se assuste. Deixe eu lhe explicar: acho que você não sabe, mas tem um bom tempo que o seu filho não joga pelada com a turma de meninos que vão lá pro campo.
- Como não? O meu filho não vai pra lá todos os dias, porque gosta de me ajudar e também porque tem os deveres escolares pra fazer. Mas, dia sim, dia não, ele vai brincar com os meninos. Não vejo nada de errado nisso. E não entendo o que você quer me dizer.
- Veja bem: nos dias que ele sai pra jogar, você pensa que ele vai jogar, mas não vai. O meu filho me disse que ele fica na beira do riacho sozinho e de costas para o campo. E ele só me disse isso esses dias, mas há muito tempo que ele age assim. Então, só agora que tive um tempinho de vim aqui pra lhe falar sobre essa atitude do seu filho, um tanto estranha, você não acha? Por que todos brincam e ele se isola?
A mãe do menino, surpresa, constrangida e preocupada com aquela situação inusitada que a amiga veio lhe contar, no entanto, tentou contornar o caso com alguma explicação razoável...
- Olhe, amiga, quanto a ele não jogar com os amiguinhos, realmente eu estou surpresa, pois pra mim, quando ele ia pro campo era pra jogar com eles... E você está me dizendo o contrário, que ele nunca jogou, além de se isolar na beira do riacho... Assim, é sim, motivo de alguma preocupação, mas não de desespero, e só falando com ele pra saber o que se passa, por que ele age desse jeito estranho pra um menino de sua idade... Por outro lado, até certo ponto eu entendo esse tipo de comportamento dele, pelo jeito que se comporta comigo...
Atenta às suas explicações, a amiga lhe indagou:
- E como é que ele se comporta com você? Entenda: o meu interesse é o de ajudar e não de atrapalhar ou interferir na vida de vocês...
- Entendo sim, amiga, e lhe agradeço pela preocupação e apoio em nome de nossa boa e sincera amizade... Olhe: o meu filho, o único que tenho, pra mim é um amor de criança. Ele é tudo pra mim. Como você sabe, o pai dele sumiu, nem sei se tá vivo ou morto, e até hoje não tenho notícia dele. Por enquanto, ele não me pergunta sobre o pai. É um menino obediente, estudioso, bem comportado, me ajuda no que pode, apesar da pouca idade, e tem uma inteligência apurada para a idade dele...
- Como assim - interpelou a amiga, com uma certa curiosidade?!
- Além de ser meu filho, temos uma ótima relação de amizade. Aprendemos a nos ajudarmos, a nos consolarmos, e a nos servirmos em nossas precisões diárias. Acho até que ele supre a falta do pai que não o conheceu, desdobrando-se em fazer-se presente em minha vida, para que nos completemos como uma simples, porém, feliz família.
- Conte-me mais - se interessou a amiga, tão boquiaberta por ouvir aquele relato, uma vez que se tratava de uma criança, a seu ver, tão diferente das outras.
- Então, ele é, como se costuma dizer, uma criança super-dotada, uma criança que tem uma sensibilidade aguçada, responde-me as perguntas que lhe faço com muita segurança, e eu não sei de onde lhe vem tanta capacidade imaginativa, fico até um pouco assustada, sem saber se isso é bom ou ruim, quero dizer, ruim não é, mas ele é apenas uma criança e eu não sei como lidar com isso... Apenas desconfio que pode ser uma questão espiritual, mas não entro em maiores detalhes com ele nesse sentido, até porque, não vejo razão, por enquanto, para me preocupar. Só sei que, por algum motivo especial permitido por Deus, estamos juntos como mãe e filho, e nos sentimos bem felizes.
A amiga olhou-a admirada do que acabou de ouvir. E lhe respondeu:
- Olhe, amiga, realmente acho que não tem nada de errado com o seu filho, e pelo visto, vocês se amam muito, são muito unidos e isso é essencial à vida harmoniosa em família. Cada pessoa tem o seu jeito próprio de ser. No caso do seu filho, me parece que ele não gosta de jogar bola, mas gosta de outras coisas como te ajudar no serviço doméstico, de estudar, de contemplar a natureza, de ver e sentir com a sensibilidade apurada, o que outras pessoas não veem e não sentem, mesmo sendo ainda uma criança, com um corpo novo, mas com um espírito maduro, experiente, evoluído... Como você, eu também não sei lhe dizer por que ele tem essa suficiência imaginosa precoce, mas a certeza que tenho, na falta, no momento, de uma explicacão lógica e detalhada, é que ela só pode vim de uma fonte, a fonte eterna em que nos movemos e existimos: Deus!
- Você tem razão, amiga, concordo com você. Ainda bem que você entendeu o jeito do meu filho ser, a partir do que lhe expliquei.
- Entendi sim, e acho que, por enquanto, não há motivo para preocupar-se, contudo, queria ir com você lá no campo, como se fossemos fazer uma visita espontânea, pra ver como eles estão brincando, além de saber se realmente o seu filho está jogando ou sentado à beira do riacho, conforme o meu filho me falou... Quem sabe, ouviremos dele, algo significativo que justifique a sua forma arredia de ser?
Faltavam dez para as quatro horas da tarde, quando as duas amigas saíram andando sorridentes por um caminho estreito, e em poucos minutos chegaram ao campo. Ao correrem a vista, viram que as crianças só usavam um lado do campo pra jogar. Bem atentas, as duas mães viram todos brincando, exceto, a única criança que não gostava de jogar. Antes de irem a uma das laterais do campo, por onde corria o riacho, o jogo acabou e as crianças, cansadas e alegres, vieram ao encontro delas. Logo, o filho da amiga falou:
- D. Marta, a senhora quer saber onde tá Zezinho?
- Sim, Carlinhos, onde ele está?
- Ele não joga com a gente. Toda vez que chegamos pra jogar, ele se afasta e fica ali na beira do riacho de costas pro campo... Às vezes, calado, olhando as águas do riacho; e às vezes, a gente vê ele falando, só não sabemos com quem ele fala, porque a gente não vê ninguém com ele...
- Está bem, Carlinhos, vamos todos lá, eu vou falar com ele, pra saber por que age assim, se isolando de vocês?
Quando chegaram próximo de Zezinho, ele estava, conforme foi dito, de costas, e só virou-se quando ouviu a voz de sua mãe:
- Zezinho, meu filho, o que faz aqui, sozinho, quando devia está jogando com os seus amiguinhos, por que você age assim?
Revelando serenidade, equilíbrio e simplicidade, Zezinho deu a seguinte explicação a todos que o olhavam com visível curiosidade:
- Peço-lhe desculpas, minha mãe, por não lhe ter dito que vinha pro campo, não pra jogar, mas pra ficar aqui na beira do riacho... Não gosto de jogar bola, apesar de gostar dos meus amiguinhos... Se não fosse um outro amiguinho meu que fica sempre comigo aqui, eu nem vinha pro campo...
- Que outro amiguinho, meu filho, eu não vejo nenhum outro, além dos seus amiguinhos de jogar pelada...
- Esse amiguinho, mainha, está comigo em todos os momentos de minha vida. Em algum momento, ele é uma criança, em outro, um adolescente, em outro, um adulto, mas é sempre a mesma pessoa, a mesma alma, o mesmo anjo, o meu anjo da guarda...
- Um anjo, meu filho, como assim, pelo que sei, os anjos são bons espíritos mensageiros de Deus!
- Sim, minha mãe, a senhora está certa, eles vivem com Jesus, são os anjos, arcanjos, serafins e querubins, e se ocupam em diversas funções. Uma delas é nos acompanhar para nos ajudar, nos socorrer, nos orientar em tudo que fazemos. Cada um de nós, tem um anjo da guarda, que é um espírito protetor, um bom espírito que está todo tempo perto de nós, do nosso lado, e só quer o nosso bem. O meu anjo, por exemplo, aonde quer que eu vá, ele está comigo. Eu me sinto bem com a sua presença ao meu lado. Em casa, na escola, aqui no campo à beira do riacho onde estou com ele agora, e até quando eu durmo, ele me leva pra passear por muitos lugares lindos... Ele me disse, minha mãe, que por enquanto, eu só posso voar com ele nos sonhos, mas quando o meu corpo morrer, não agora, porque ainda sou criança e vou crescer pra fazer muita coisa boa em minha vida, principalmente, tarefas simples de auxílio ao próximo, mas de elevado valor moral, e só então, quando estiver velhinho e o meu corpo morrer, aí sim, é que vou voar com ele por um tempo mais prolongado, e talvez nem volte mais à Terra, porque vou me ocupar com outras missões em outros planetas; do mesmo jeito que o meu amiguinho anjo faz comigo, os outros anjos da guarda fazem com todos que estão vivendo na Terra, cada um, recebendo a ajuda, de acordo com o seu merecimento. Ele me disse, minha mãe, que esta é a minha última encarnação aqui na Terra. Depois que terminar esta missão aqui, vou passar um longo tempo desencarnado, sem deixar, entretanto, de executar outras missões igualmente especiais...
Após a surpreendente revelação de Zezinho, a criança que dizia ter um anjo ao seu lado, a notícia de que ele tinha poderes sobrenaturais logo se espalhou por muitos lugares; dos mais próximos aos mais longínquos, vinha todo tipo de gente desconhecida interessada em conhecê-lo, tanto com boas, quanto com más intenções. Só que D. Marta, mãe e responsável por Zezinho, temerosa de que algo de ruim pudesse ocorrer com o filho ainda criança, impediu que tais peregrinações ocorressem. Apenas depois que Zezinho ficou adulto, pode se estruturar melhor para cumprir a missão de amor, humildade e caridade, para a qual lhe foi atribuída desempenhar pela Espiritualidade Superior, pelo Mestre Jesus e pelo Pai Maior.
Escritor Adilson Fontoura