A Bicicleta
Eu não sabia bem, porque o ano de 1972 me marcou tanto, muitas vezes me encontro perdido nas lembranças de alguns fatos que aconteceram no referido ano, lembro da escola Olegário Mariano que ficava na Rua Olinda, Bairro São Geraldo onde morávamos, onde eu estudei na primeira série, eu, que era retardatário, pois deveria ter entrado com sete anos, mas, por motivo de “manha maior” entrei na escola já com oito.
Digo “manha maior” porque hoje eu compreendo o que minha mãe deve ter passado naquele tempo.
Ao matricular-me no “primeiro ano” (como se dizia na época) a coitada não tinha idéia da via crucis que teria que passar, pois não havia santo que me convencesse a ficar sem ela na sala de aula.
– Isso é só no inicio, depois ele acostuma! – Dizia ela.
Mas infelizmente ela estava errada, ainda vejo nas minhas nevoentas lembranças, minha mãe sentada na ultima classe ao fundo da sala assistindo a aula, sendo re-alfabetizada contra a vontade, fingindo prestar atenção em tudo o que dizia a professora, lutando por uma causa perdida com um jeito muito desanimado.
Mas nada disso adiantou, nos dias que ela não podia ficar comigo, caía o mundo e o berreiro era grande, para que eu ficasse, me prometiam brinquedos, doces, e até um cachorro, mas foi em vão, até que meu pai me prometesse “uma tunda de laço”, foi quando fiquei doente, e com febre, só assim então desistiram de mim naquele ano.
No ano seguinte nada disso aconteceu, eu ia à escola normalmente, na companhia de meu irmão maior que também estudava lá.
Minha professora eu nunca mais esqueci, Ruth era o nome dela, e já não cozinhava na primeira fervura, tinha bem uns quarenta e poucos anos, mas era muito querida e dedicada.
Na sala havia uns trinta alunos, entre eles uma menina, cabelo curto castanho claro, olhos castanhos, a pele dela era branca como uma folha de oficio, o nome dela, hoje eu já não tenho certeza se era Sandra ou Tânia, mas havia algo nela que me deixava alterado, pois muitas vezes tive vontade de conversar com ela, mas a voz não saía, as pernas ficavam bambas e o coração parecia que ia fugir boca a fora.
Um dia ao terminar a aula, eu a segui de longe sem que ela percebesse, queria descobrir onde morava, e consegui, era um prédio de três andares na Rua Buarque de Macedo, ficava a duas quadras da minha casa.
Para mim já era um bom começo, pois daquele dia em diante eu pensava em fazer este caminho ao sair da escola, assim eu poderia acompanhá-la
e quem sabe? Até trocar duas ou três palavras com ela durante o trajeto.
Meu pai era um homem muito pobre, e ainda é, mas na época era muito mais, ele trabalhava em um posto de molas na Avenida Paraná e morávamos ao lado numa casa muito velha e feia, o bairro era antigo, mas tinha muita gente “remediada” como dizia a minha mãe, muitas vezes éramos hostilizados por algum vizinho preconceituoso, “maloqueiros” proferiam eles, ou “crianças raquíticas” lembro de ter ouvido essas palavras uma vez, mas havia também gente muito boa por lá, alguns eu comparo hoje a verdadeiros anjos, entre os bons, tinha um comerciante, o “Seu” Marcio, assim o chamávamos, era o dono do armazém da esquina, uma vez, talvez por pena da situação em que passava minha família, ele propôs aos meus pais que dessem minha irmã em adoção para ele e sua esposa. Nada faltará a ela, terá uma vida de princesa disse ele, mas meus pais não aceitaram, nem levaram por mal a proposta, pois o “Seu” Marcio era um homem muito bom. Também havia outro amigo da família, era descendente de italianos o Sr. Petinelli, um anjo sem asas que Deus pôs em nosso caminho, veio dele o melhor presente que ganhamos em nossa infância, uma bicicleta, nem o tempo impiedoso conseguiu apagar de minha memória a imagem daquele presente, era azul, pára-lamas largos como os de uma motocicleta e bem na ponta, uma garça de asas abertas modelada em alumínio, tinha “pneus balão” como se dizia na época, o quadro era rebaixado, por ser modelo feminino, a marca era “Pionner” nunca mais esquecerei aquela marca, era Germânica... Eu acho.
Em poucas “paletadas” aprendi a andar nela, foi muito fácil, alguns hematomas, cotovelos e joelhos esfolados e lá estava eu, um verdadeiro ciclista correndo pelo pátio da oficina em que meu pai trabalhava.
Mal podia esperar o final da aula e saía disparado pra casa, mal almoçava e já pegava a bicicleta, parecia um sonho, um maravilhoso sonho com rodas enraiadas e grossos pneus.
Outro anjo era a professora Ruth, tinha muita paciência comigo, quem sabe por pena ou talvez por ser boa de coração mesmo, eu aprendia depressa mas o meu interesse pela menina de cabelos castanhos e pele branca como papel aumentava a cada dia.
As tardes do ano de 1972 pareciam ser em preto e branco, fora o azul da bicicleta e os olhos castanhos da menina, eu pouco me lembro das cores que rodeavam meu pequeno e pobre mundo.
Foi num sábado, dia de pouco movimento na rua, que pedi a minha mãe para estender minhas pedaladas pela calçada, ela vendo que eu já estava seguro e que havia pouca circulação de automóveis me deixou ir.
Enfim liberdade, eu voava pela quadra, tão livre como o vento que tocava meu rosto, numa dessas “viagens” parei na esquina da Buarque de Macedo com a Rua Amazonas e imaginei, “é só atravessar a rua e posso me exibir com a bicicleta em frente ao prédio onde ela mora”, mas minha mãe havia recomendado para não atravessar.
Que pena! Só alguns metros e tudo seria diferente, pensei bem, avaliei a situação e atravessei, pedalei lentamente em direção ao meu intento,
andei pra lá e pra cá varias vezes, mas não havia viva alma para assistir minhas manobras, finalmente desisti, olhei em frente, havia uma espécie de recuo na calçada, acho que era um estacionamento para clientes de uma empresa, era um bom e espaçoso lugar para brincar, atravessei novamente outra rua, agora já sem o sentimento de culpa que me perturbara na primeira vez, o lugar era perfeito, ali eu andei em círculos, em forma de oito, e até arrisquei algumas manobras mais perigosas, como soltar as mãos do guidon, por exemplo. Brinquei até cansar, depois fui pra casa, frustrado por não ter conseguido o que eu mais queria, que era impressionar a menina dos olhos castanhos.
Mas a vida continua, e o tempo voa, logo era sábado novamente, e eu conseguira permissão para andar na quadra de novo, sem hesitar atravessei as duas ruas e fui brincar no mesmo local que eu havia descoberto no sábado anterior, minha pista de provas, onde arriscava manobras complicadas para uma criança daquele tempo (era o que eu pensava)
depois de pedalar bastante, já cansado decidi ir pra casa, foi quando notei que havia alguém me observando no outro lado da rua, era ela, meu coração disparou, as pernas tremiam, ficou difícil até pra respirar, ela vestia um vestido claro, quase tão claro quanto a sua pele, quando eu olhei, ela acenou para mim, me revesti de coragem e falei com a voz meio tremula.
– Que bom que não temos aula aos sábados. não é?
Ela respondeu meio sem graça.
–É, mas até que eu gosto da escola.
Pra mim já era um ótimo começo, pois eu conseguira trocar duas palavras com ela; novamente arrisquei.
– Tu podes atravessar a rua e vir até aqui?
– Posso! – Respondeu a menina.
E atravessou delicadamente, como era seu jeito, e perguntou.
– Como você aprendeu andar de bicicleta?
– Meu irmão mais velho me ensinou como equilibrar-me, e o resto eu aprendi sozinho.
– É muito difícil?
– Não, basta ter coragem, e alguém que ajude nas primeiras vezes. Tu queres aprender?
– Não sei se tenho tanta coragem, mas bem que gostaria.
– Posso te ensinar, se tu quiseres.
– Mas já está tarde, logo minha mãe vai me chamar pra dentro, você não pode vir amanhã?
– Posso sim. Mas que horas?
– Pode ser à tarde?
– Combinado! Amanhã à tarde estarei aqui.
Atravessamos juntos a rua e nos despedimos, eu pedalava olhando pra trás na esperança de vê-la acenando para mim, mas isso não aconteceu, que bom, pois só assim ela não viu quando trombei com um velhinho que caminhava na calçada e me esborrachei no chão.
Ouvi poucas e boas do ancião, que até ameaçou chutar minha bicicleta, mas ficou só na ameaça.
Aquela foi a noite mais longa da minha infância, perdi o sono e ficava imaginando mil besteiras na minha inocente e ingênua cabecinha.
Na tarde seguinte, tudo de novo, a permissão da mãe, a travessia das ruas e finalmente o meu pequeno recanto.
Ao chegar já a avistei, estava ela sentada sobre uma mureta que havia na entrada do prédio, uma energia muito boa invadiu meu corpo raquítico de menino pobre, nada mais importava, só aquele momento de encanto, e o que viesse a seguir.
Acenei para ela e perguntei;
– Está preparada para aprender?
– Acho que estou. – Respondeu ela.
Alem dos olhos castanhos e da pele branca, ela tinha uma boca delicada com lábios magriços e anêmicos, e tudo que saia daquela pequena boca soava como música aos meus ouvidos, naquele dia, ela estava usando bermuda e camiseta, talvez para facilitar as manobras com a bicicleta.
Posicionei-me ao lado segurando o guidom com uma das mãos ajeitei o pedal para que ela se apoiasse melhor e pedi que “embarcasse”, ela apoiou delicadamente o pé no pedal e sentou no banco impulsionando a bicicleta para frente, enquanto eu fazia força para manter o seu equilíbrio, fui tirando a mão do guidom e segurando com a outra abaixo do banco deixando-a livre para pedalar, ela andava em longos círculos e eu acompanhando para que não caísse, agora eu já segurava pelo “bagageiro” e ela aos poucos ia se equilibrando, um lindo quadro que mereceria ter por titulo “felicidade”.
Eu feliz por estar junto dela e ter conseguido a sua confiança, ela feliz por estar pilotando a bicicleta, nós felizes por estarmos superando nossas dificuldades e medos.
Muitas vezes voltamos lá, eu ficava sentado numa pedra admirando-a enquanto ela pedalava longos círculos com minha bicicleta até cansar, aí ficávamos horas conversando sobre vários assuntos, entre eles, a escola, revistas em quadrinhos, animais de estimação etc.
Eu gostava de escutar sua delicada voz, de ver o vento tocando seu curto cabelo, dos olhos castanhos, e da pele clara como papel.
Nunca aconteceu nada mais que isso, muitas vezes tive vontade de pegar sua mão, mas não tive coragem, pois tínhamos apenas oito anos, e éramos ingênuos como as crianças devem ser, talvez seja por isso que o ano de 72 tenha me marcado tanto, foram momentos de pura poesia que o tempo impiedoso se encarregou de deixar pra trás.
Só agora sei porque as tardes daqueles dias me chegam à memória em preto e branco, pois se fossem coloridas todas aquelas recordações, o azul da minha bicicleta, os olhos e cabelos castanhos da menina não seriam tão nítidos quando os lembro.
A vida é engraçada, às vezes nos surra, outras presenteia, e às vezes nos dá uma surra de presente, pois se minha família não fosse tão pobre na época, certamente eu não estaria contando esta história, não teria vivido este momento de ingenuidade poesia e encanto, acredito que as pessoas que tem sensibilidade devem guardar os acontecimentos que ocorreram em sua infância em algum canto do baú das recordações com muito zelo e carinho, e repassar essas experiências a outros, antes que as areias do tempo apaguem os rastros na memória e restem apenas fragmentos.
Muitas vezes me pego perdido em algum lugar do passado, como quem visita um museu, e minhas recordações me são tão importantes quanto a Mona Liza de Leonardo da Vinci é para o Louvre, e em algumas destas visitas ao passado fico tentando juntar os fragmentos que restam na memória e me indago...
...os olhos e cabelos dela eram castanhos, a pele branca como papel, a boca era delicada pequena e anêmica.
Mas qual era mesmo o nome da menina???