O amigo do Charlie estava sentado ao lado. Ele era enorme de gordo, cobrindo todo o sofá que era branco. Sorria, de pernas cruzadas, vestindo apenas uma cueca apertada e uma camisa do Rock in Rio, de 1985 surrada e suja de Salgadinhos Doritos. Parte dos seus testículos acabaram saindo pelo canto direito, mas ninguém se importava.

- Eu fiquei num estágio momentâneo de depressão, sabe? – Charlie disse a ele, enquanto passava os canais da TV.

A televisão dizia algo assim:

- “em 2018, ria mais, sonhe mais...”

E depois, em outro canal um homem dizia assim:

- “Claire Oswald, eu nunca vou te mandar para longe...” – E a garota olhava-o nos olhos com um brilho bonito... apaixonado..., mas não no sentido carnal da coisa. Ela parecia estar apaixonada pela alma daquele homem.

- Aí ó... ninguém nunca me curtiu desse jeito! – Bradou Charlie...

O homem gordo – que era o Papai Noel... ou “Santa Claus”, ou “Klu-Klux-Claus” ... se você for do tipo americanizado... ou do tipo paranoico, sem julgamentos...) aposentado, de cabelo raspado e sem a enorme barba branca, roncava por alguns segundos, fazia bolinhas de cuspe no canto da boca e depois despertava assustado e sorrindo, tentando acompanhar as queixas do amigo.

- “é verdade que você inventou os peixes?” – dizia a menininha no filme, deitada na cama, na hora de dormir. A babá, que era a mesma Claire de antes, respondeu com um ar de triunfo: “Eu não gosto de nadar sozinha.”.
 
As pessoas lá dentro, - espalhadas pela casa, menos ali. – Conversavam sobre diversos assuntos. E eles não sabiam que Charlie era uma pessoa. Pra eles Charlie era algo que tinha que estar ali, como a extensão de uma outra pessoa... Ou como um corpo estranho. Não um câncer..., mas talvez uma verruga, uma pintinha na perna... que nem a da Angélica... Do tipo que você prefere sem, mas... que jeito a dar?

Por sua vez... desde o ano interior, Charlie parara de tentar ser gentil com as pessoas. Não com eles, mas com todas elas. Tentar ser aceito dava mó trabalhão, sem muitos resultados. E naquele momento, tentar ser aceito... significava que em vez de assistir a maratona de natal do “Dr. Who”, teria que participar da roda de conversa na sala, tentando dizer coisas adultas e parecer inteligente.

- “Ser inteligente é um porre, ser adulto é um saco. Não passe o canal! Dr. Who de Natal vem aí em 5,3,2...”

Papai Noel bebericava um conhaque Domus com água de coco e estava prestes a começar a se masturbar olhando a Claire numa roupa dos anos 20, quando Charlie atirou um livro (era O Amor nos Tempos do Cólera, de Garcia Márquez) em sua cabeça.

- Pó-Pará. – Censurou Charlie.

Papai Noel se recompôs, tirando de baixo de seu travesseiro o seu velho capuz vermelho. Estava um tanto desbotado, mas ainda dava pro gasto.

- O que você quer de presente meu filhote?
- Tenho tudo o que preciso... maratona de seriado, comida... e... você, ué.

O bom velhinho coçou a cabeça sorrindo sem jeito, e limpou o suor da testa com a camisa preta, coçou também o nariz e o queixo, pensativo e um pouco frustrado. Era difícil pra ele quando alguém recusava presentes, mas isso estava acontecendo já há algum tempo, Papai Noel não podia dar as coisas que as crianças vinham pedindo ultimamente. Sua velha fábrica não produzia nada daquilo...

- Desculpa Noel... eu entendo você. As pessoas querem sexo. E facilidades... e sexo... e violência... e mais facilidades, e mais sexo... e mais sexo... e também violência. Ah! E também mais sexo e facilidades também. – Balbuciou Charlie enquanto tomava um bom gole de uma Coca-Cola Diet gelada.

- Vamos mudar de assunto! Você sabia que o Henrique, o escritor... está tipo assim, mais de VINTE DIAS atrasado pro conto de natal anual???

O velhote suado ignorou o comentário. Papai Noel era duro na queda... Ele não desistia. Já tinha visto tempos difíceis antes. O bom velhinho estava enferrujado, era apenas isso... É preciso lembrar que a sua fábrica de brinquedos, - e o seu velho trenó - sobrevivera há duas guerras! Isso sem contar com pestes, genocídios, atentados e o cacete... portanto, continuou futucando o seu chapéu, com um olhar meio insano e perdido. Parecia estar obcecado.

Charlie pensou em aceitar qualquer coisa que ele oferecesse e fingir que estava feliz com o presente. Mas o gorducho seminu ao seu lado era o seu melhor amigo... Um irmão praticamente. Desde sua primeira cartinha, aos seis anos de idade, Charlie sempre fora muito sincero com ele.... Sinceridade era a base daquela relação. Então quietou-se e continuou na maratona, um pouco preocupado com a agonia do amigo.

- Aaaaháá... – Gritou o velho, de maneira enlouquecida.
- iiihh... quiéééé????!! – resmungou o rapaz, impaciente, enquanto apertava o “mudo” no controle remoto e irritava-se com a falta de Coca-Cola e amendoim no recinto. – QUIÉ? Seu chato!
- “Ow-how”...bem, você sabe. Achei algo pra tu, Tatu.

Sem querer, Charlie acabou apertando um botão e mudando de canal. Percebeu que passavam os melhores videoclipes de 2017 e que ele não conhecia nenhum deles. Encarou a televisão por alguns poucos segundos fazendo uma careta enojada, diante da música e das pessoas dançando no vídeo.

- Aqui. – Disse Noel. - Isso é uma bomba atômica. – Sussurrou o bom velhinho, segurando as duas mãos na boca, prendendo a risada de um jeito infantil.

- Tá. Brigado. E isso faz o que?
- Como assim FAZ O QUE?! Ela explode e mata todo mundo ué...
- Aaahhnnm... pensei que você tivesse querendo dizer que era um brinquedo tão bom que era tipo assim “a bomba H” dos brinquedos...
- Não seja ridículo. – Grunhiu o velhinho com nítida irritação e cansaço com o seu amigo sonolento, entediado, tristonho... e meio babaca.

Charlie pegou a esfera vermelha e cintilante. Ela piscava. Como se toda a energia do universo estivesse acumulada e guardada ali dentro. Papai Noel puxou do chapéu – meio imitando um mágico de circo pobre... – um enorme controle remoto com apenas UM BOTÃO, vermelho, como não poderia deixar de ser.

- Aí ó. – Disse o velhinho atirando o controle no colo de Charlie.
- É pra acabar com a zorra toda, é? Bem no Natal? – Questionou o rapaz.
- Aí é com tu, Tatu. Eu só dou os presentes... se você vai brincar com ele, ou juntar com todos os outros bonecos dos Comandos em Ação em seu armário, o problema é seu.

Charlie pegou o controle e pôs-se a analisa-lo como se fosse grande entendedor de controles remotos e bombas atômicas.

Olhou a TV e viu que a maratona de Dr. Who tinha acabado e que um filme adolescente com lobisomens de chapinha no cabelo estava passando (e provavelmente passaria até o final da noite). Uma risadinha aguda e feminina soou de longe, lá na sala de estar. Tinham chegado mais pessoas, visitas. Parentes. Pareciam rir e se abraçar. Talvez o vinho tivesse feito o efeito desejado.

- ... hummm... bem. Se eu não apertar o botão... vou ter que ir lá cumprimentar as pessoas... né?!
- Hummmm-Rummmm. – Balançou a cabeça o velhinho, que fedia salgadinhos.

Charlie encarou o controle remoto com seriedade. Depois escutou mais um riso, alto, estridente, soando lá ao longe.

-  ... eu vou morrer também?
- É uma bomba atômica, seu pulha. O que você acha que vai acontecer com você?! Até EU vou morrer!
 
Sem pensar demais, Charlie apertou o botão... (não havia muito à se pôr na balança.).

O Papai Noel gargalhou. Sua barriga balançava como uma geleia de morango suada e peluda. Os pequenos e murchos testículos também balançavam freneticamente e pareciam Ewoks (aqueles bichinhos peludos e fofinhos que ajudaram a destruir o império no filme Guerra nas Estrelas) dançarinos.

Tudo foi pelos ares. O conto de natal mal escrito acabou. E a Quarta-Feira de Cinzas chegou bem mais cedo.