Marieta, Luanda
Ah Valdir, o senhor talvez nunca entenda a besteira que fiz naquele dia! Marieta tinha os olhos cegos de medo e a multidão, feita vasta lanterna com olhos bem abertos, cercava a coitadinha. O senhor nunca irá saber, meu velho, eis a razão na qual não ouso mais chamá -lo de meu pai.
Marieta era uma dessas fadas da noite, era um vagalume que piscava atrevidamente na escuridão, e de tanta luz própria não lhe era possível enxergar aqueles que não brilhavam tanto, mas apenas ouvir a quantidade de gente que a aguardava. Ela era fada. Mas tinha uma das asas quebradas e o rosto pálido, estático, que fitava a multidão inquieta, detrás da cortina. E porque eu passasse à sua frente tantas vezes que já nem sabia mais, e em todas elas seus olhinhos me atravessassem dirigindo -se a um nada fixo, eu tive de sacudi -la e lhe dirigir a palavra. Foi aí que a pior besteira por mim já dita escapou da minha boca, sendo a cruz e a espada daquela noite que até hoje não deu vez ao sol.
-Marieta, que é que lhe ocorre, minha irmã? Não vê que assim inquieta -nos todos, olhando sabe lá pra quê, sabe lá pra onde? Já é dada a hora de subir, vamos!
-Não posso, Geraldo! Não posso! Vamos embora...
-Embora! Que diz, menina? Resolveste então ignorar as milhas de andança ao sol até aqui? Que acha que te sucede quando chegarmos em casa e papai tonto de preocupação pegar do cinto por não saber aonde estava? Há que valer a pena tanto esforço!
- Não posso, Geraldo! Não consigo!
- Olha -me nos olhos, Marieta! Agora te lembra do dia em que Seu João de Tabetinga tocou a viola para que cantaste naquele primeiro sábado de janeiro? Te lembra dos olhos na multidão? Paizinho chorava, ao mesmo tempo sisudo como sempre fora o velho, mas chorava, bem sabe porque... Quantos paizinhos te esperam agora, no bando sedento por um sabiá?
- Não sei se sou sabiá, Geraldo...
- Pois eu digo que é. Vai e canta, Marietazinha, que não se atravessa um oceano pra morrer na praia e não merece retornar à ilha quem já se habituou a observá -la de fora.
Longos segundos se prolongaram em silêncio. Marieta tinha os lábios trêmulos e as mãos juntadas num terço, fitando de olhos baixos os próprios pés, maltratados de andar.
-Eu me vou, irmão... Reza por mim.
Dando- me o terço e os lábios nas mãos e o olhar das escadas, Marieta foi . Para mim era a sombra tímida e pequena de uma silhueta sobreposta ao holofote, mas certamente para todos fosse ela a própria luz ainda maior, pois deu-se que o povo todo silenciou quando a pequena de vestido rosa estacou frente ao microfone, com braços duros junto ao corpo. E de dedos fincados às miçangas emboladas nas mãos, eu ouvi romper o vazio, o eco primeiro que ecoa até hoje em minha cabeça daquela capela contradita ao semblante medroso e paralisado que há pouco me encarara. O senhor jamais poderia supor, meu senhor, mas Marieta voava de pés fincados no chão. Era uma águia que em pouco tinha os braços abertos ao alto, jogados a um vento imaginário que supunhamos conversar com a voz, porém o lugar era comum, sem vento, sem sons, sem nada.
Nem eu poderia supor, Valdir, que nossa pequena pudesse estar tão gandalhona ali de cima, que aquela vozinha acanhada que a gente conhece pudesse ficar tão alta. Mas a verdade é que me deixei levar pelo momento e não tão cedo me arrependi, porque a miúda dava prova de que devia estar ali e que tudo findaria naquela noite, voltando a ser a mesma menina de antes, a estar sentadinha num canto em estudos, a estar no trabalho da horta, da reza, pedindo bênção ao pai, ajudando nas costuras da mãezinha. Mas é que com aquelas palavras minhas na hora certa, oh, aquelas palavras, meu senhor! Elas levaram Marieta de nós, sim, elas levaram a pequenina para o mundo dos sonhos, pois Marietazinha se gostou demais da coisa e aí eu já não pude mais... Eu penso, meu velho, penso que se não tivesse dito palavra, a pequena não tinha subido lá em cima, mas ocorre que ela veio depois rompendo a cortina em lágrimas e me disse o que ficou talhado no meu coração de filho sofredor.
-Ouça os aplausos, Geraldo! São também para você! Se não me desse coragem, então que seria? Eu viveria por toda vida em nosso sitiozinho, em nosso mundo, em nossa ilha como bem disses! Eu voltaria sem nada ter feito e então não saberia o que é cantar! Mas agora...
-Agora o que, Marieta?
-Ora, agora a capital me espera, meu irmão! Amo nosso mundo mas hoje soube por causa sua porque nasci . Cantar é minha sina, Geraldo! Cantar é minha vida!
-Ora, deixe disso! Te trouxe aqui não foi pra ser ingrata, que pensa dizer ao paizinho sobre isso?
-Não dizer nada, ele não entenderia. Alguém acaso entenderia? Mas diga, irmão, acha justo? Acha certo me colocarem numa gaiola onde não canto até que me case, sendo alimentada ao gosto e à quantidade de meus criadores, passando depois ao segundo dono, quando eu digo que tenho asas e que posso voar sozinha além dessa gaiola?
- Não passa das dezesseis primaveras, minha criança... Depois tratamos disso.
-Já sei muito de mim, meu irmão. Sei do que mais me importa.
-Ama mais à música do que a nós, Marieta?
-Não fazei de mim escolher, irmão. Temo que não entenderia a resposta. E não sofra, que eu vou voltar...
Tentei entender o sentido daquelas palavras, mas me calei. A miúda compreendeu que meu semblante desaprovava aquelas últimas frases, e talvez porque não desejasse sustentar discórdias, se retirou de mansinho ,deixando- me só com minhas reflexões, indo conversar não sei com quem. Estava tão confuso sobre aquelas palavras, meu senhor, tão atordoado com a idéia de perder nossa pequenina para o mundo, que não prestava atenção em mais nada. Foi quando Marietazinha voltou trêmula e chorona, confundindo mais ainda meus pensamentos . Não entendi decerto o que sucedera naquela conversa, o que teriam dito à frágil pequena, tendo ímpetos de acertar as contas com Sr. Cavalcante, rico proprietário do local que nos observava ao canto do camarim. No entanto, a pequena aflita me reclamava , e assim peguei do chapéu, enlaçando -a com carinho, decidido.
-Vamos embora! -Disse firme e em baixo tom.
-Me deixe, Geraldo! - Disse com bravura,soltando - se depressa de meu braço. Depois, com carinho continuou principiando novo pranto, olhando -me fundo nos olhos.- Vou buscar algo para bebermos. Não saia daqui . E fique com isto, por favor .
Marieta me entregou pequeno papel dobrado, com letras incertas e apressadas, sem rabiscos nem corrigendas, pequeno papel dobrado apenas, que guardei no paletó . E como não supusesse feito maior, somente estranhei sem nada dizer, o fato de Marietazinha levar consigo a mala e selar um beijo em minha testa, saindo para buscar algo para bebermos. Quando finalmente me ocorreu a intuição, era tarde. Em meio à multidão que ocupava a rua, um carro rompia a massa de gente, apressado, com a placa da capital.
O senhor não imagina, Valdir, tamanho o nó na garganta e o desprezo por mim, que me sucederam de prontidão. E eu dei pra bravejar, enlouquecido, entorpecido de raiva e loucura onde estava minha irmãzinha, gritando a qualquer um que me aparecesse à frente cadê Marieta, cadê Marieta... E ninguém podia dar notícias da pequena, meu velho... Ninguém poderia saber, porque a miúda ainda não tinha nome, ou talvez já ensaiasse outro , porque até seu nome ela deixou pra trás.
E dada a culpa, o remorso e a dor, eu também sumi no mundo , a procurar minha irmã . Dei pra me mandar rumo à capital, com sua carta de despedida em mãos, mas a verdade é que nunca consegui achá- la. Corri por toda parte, maldizendo a vida e a mim mesmo, na cruel angústia de me arrepender por uma só frase, pagando o preço que se paga por ceder ao sonho. No meio do mundo, estava Marietazinha, sabendo através de mim que era grande, era brava e era pura, tendo por mim a notícia primeira, que talvez quisera Deus que eu escondesse, eu me perguntava... Sim, meu caro, a notícia que o senhor escondera de que a menina era divina e nascera para cantar.
O fato, porém, é que nenhum de nós pudera deter . E em meio ao meu remorso por tê -lo feito perder seus anos com sua menina, e ela também com sua mãezinha, corroí -me em noites mal dormidas e a lua já não tinha prata, pois minha irmã sumira no mundo. Eu também era pássaro sem ninho, a indagar o que é que a vida queria e iria fazer de mim. E Marietazinha veio me responder um dia desses, uns anos depois. Certa vez a vi no jornal e não pude acreditar. Sem dúvidas era ela. Dizia que as pessoas certas são quem cumprem um papel decisivo na vida das outras e que achava pouco provável, mas que desejava que sei irmão, um tal Geraldo pudesse ligar o rádio e saber que teve a decisão certa, tirando a venda de seus olhos naquela noite.
No entanto, eu ouvi noutro dia desses alguém dizer que dava o tiro, mas quem mata é Deus. Hoje eu vejo que só apertei o gatilho, meu pai. E quando eu a ouvi no rádio, soube que eu era digno de chamá -lo assim outra vez. O senhor gostaria de saber disso . E naquele mesmo dia, chorei sobre os anos, ouvindo o eco de uma voz que rompia meu vazio e me fazia pássaro de volta ao ninho, às minhas recordações . Ela cantava como um sabiá. E dessa vez tinha um nome, que eu digo seu segundo, mas que a multidão jamais desconheceria quando eu perguntasse. Era Luanda, e diz - se que vinha de uma terra divina