Delinqüência

Os anos setenta foram muito difíceis para minha família, meu pai trabalhava muito, mas ganhava pouco, na velha casa alugada em que morávamos não tínhamos quase nada além de uns móveis velhos, não possuíamos geladeira nem TV, nosso eletrodoméstico resumia-se num minúsculo rádio, este nos foi dado por uma tia, que ao visitar-nos deve ter ficado comovida pela situação precária em que vivíamos, lembro que ele era cor de rosa e funcionava com duas pilhas pequenas, nas imagens que assombram minhas lembranças, me vejo sentado em uma lata que minha mãe botava em cima de uma cadeira para que eu ficasse confortável enquanto comia, a minha frente um prato de massa com feijão e o pequeno rádio roncando sintonizado num programa que se chamava “aquarela brasileira”.

Eu e meus irmãos muitas vezes íamos à escola com roupas velhas e remendadas, mas a bem da verdade devo enfatizar que apesar de tudo as roupas eram bem limpas, éramos pobres, mas não relaxados, lembro de uma vez que minha irmã foi com um vestido por cima de uma calça, acho que por medo que ela passasse frio minha mãe inventou aquela estranha indumentária.

Na escola haviam colegas cujo os pais tinham uma situação financeira bem definida, eram “remediados” assim dizia minha mãe, o João Carlos, por exemplo, fazia parte de um grupo de “lobinhos”, uma espécie de aspirante a escoteiro, o Jorge freqüentava academia de Judô, a Zuleica aprendia balé, mas tudo isso estava muito longe da nossa realidade, lembro uma ocasião em que a escola ofereceu aos alunos uma visita ao planetário, mas para nós este passeio não foi possível, pois havia uma pequena taxa para o transporte que meus pais não poderiam pagar.

Certo dia enquanto a professora explicava a matéria, João Carlos sussurrando, me chamou e disse:

– Olha só o presente que ganhei do meu pai. – exibindo um brinquedo.

Era uma miniatura de um automóvel, era linda parecia real, fiquei pasmado com o modelo, a cor era vermelha, os pneus idênticos aos de um veículo verdadeiro, até as portas eram articuladas.

A professora interrompeu a conversa e batendo as mãos solicitou atenção, vi que João havia guardado o brinquedo numa espécie de deck que havia abaixo da “classe” onde eram colocados os livros e cadernos que não estavam sendo usados no momento.

Quando tocou a sineta para o recreio esperei que todos saíssem da sala

fui até a mesa de João e furtei o brinquedo e o guardei na sacola onde eu carregava meus livros e cadernos e só então saí para o pátio da escola.

Logo após o recreio voltamos todos para a sala de aula, fiquei observando João, mas discretamente para que ele não desconfiasse de mim, vi que ele revirava suas coisas, logo a professora chamou sua atenção para a lição que ela explicava, ele voltou a concentrar-se no que explanava a educadora e deixou de lado a procura pelo brinquedo, ao final da aula fomos todos para casa, João não havia dito nada a ninguém sobre o desaparecimento do brinquedo, acho que por medo de ser repreendido pela professora por telo trazido a escola.

No caminho para casa meus olhos brilhavam, eu havia conseguido o brinquedo que tanto cobiçava, e ninguém havia desconfiado de nada.

Ao chegar em casa percebi que tínhamos visitas, era tio Daniel, irmão de minha mãe que estava lá, cumprimentei-o, ele era uma pessoa extrovertida, falava alto, sempre animado, apesar dos seus problemas físicos. Tio Daniel havia sofrido mais de uma dezena de cirurgias, caminhava com duas muletas, tinha muitos problemas de saúde, mas assim mesmo nada tirava o seu bom humor.

Enquanto ele e minha mãe conversavam, tirei o brinquedo da sacola e mostrei-o para minha mãe.

– Olha mãe o brinquedo que achei na rua. – falei num tom de contentamento.

Minha mãe olhou-me e apenas sorriu, não deu importância ao caso, mas tio Daniel notou que se tratava de um brinquedo caro e interrogou-me:

– Onde tu achaste este brinquedo Maninho?

– Foi na calçada quando voltava da escola. – respondi meio inseguro.

Mas meu tio não era bobo e continuou as indagações:

– Na calçada? Então vamos até lá, me mostra onde.

Ele deve ter percebido minha insegurança, e quanto mais eu queria explicar, pior ficava a situação.

E continuou o inquérito:

– Maninho, fala a verdade! Eu já sei de tudo, mas quero ouvir da tua boca, me conta de onde saiu este brinquedo?

As lágrimas escorriam pelo meu rosto, eu tinha vergonha de contar a verdade, não queria que me chamassem de ladrão, mas não havia outro jeito, respirei fundo e contei:

– Eu roubei o brinquedo do meu colega, foi isso o que aconteceu. Mas não quero ser chamado de ladrão.

– Não! Tu não roubaste o brinquedo, somente pegaste emprestado sem autorização do dono, mas amanhã vai devolvê-lo e tudo ficará resolvido.

– Devolvendo-o não serei mais ladrão? – perguntei ao tio.

– Não! Mas tem que prometer-me que fará isso amanhã.

– Eu prometo!

Mas as promessas não ficariam por aí, meu tio era um homem inteligente e aproveitou para estender a lição.

– Tem mais uma coisa – falou ele. – Quero a tua palavra que isso nunca mais acontecerá, caso aconteça novamente eu saberei e vamos ter que resolver de outro jeito.

– Eu dou minha palavra. – respondi a ele.

No dia seguinte saí cedo para a escola, lá encontrei João Carlos, mas não tive coragem de devolver-lhe o brinquedo, tinha medo que contasse aos outros colegas, seria vergonhoso caso a menina de olhos e cabelos castanhos que eu havia ensinado a andar de bicicleta, ficasse pensando que eu era um ladrão.

Eu não conseguia me concentrar na aula, não me saiam da cabeça as palavras do meu tio e da promessa que fiz a ele, devia haver um jeito de devolver o brinquedo sem me expor, pensei em dizer que o encontrei caído no chão e guardei para devolvê-lo, mas logo desisti da idéia, pois poderia levantar suspeitas.

Ouvi tocar a sineta do recreio, todos saiam depressa para aproveitar mais o tempo do intervalo, novamente fiquei para trás, quando todos saíram eu fui até a carteira de João e coloquei o brinquedo no mesmo lugar onde havia tirado, depois fui para o pátio da escola, logo tocou novamente a sineta e tivemos que voltar a sala de aula, fiquei apreensivo para ver o resultado da “operação”, mas a aula transcorreu normalmente até o final sem alteração nenhuma, quando saímos encontrei João e ele comentou sobre o desaparecimento do brinquedo.

– Ontem voltei para casa muito triste. – disse João.

– Mas por quê? – perguntei-lhe.

– Porque achei que haviam roubado meu brinquedo novo.

– Roubado? – perguntei espantado.

– Isso mesmo! Mas tudo não passou de um terrível engano, pois eu havia guardado o brinquedo embaixo da classe, e ao sair não o encontrei lá, devo ter procurado mal, pois estava com receio que a professora me chamasse atenção, hoje pela manhã procurei novamente e ele estava no mesmo lugar, mas te peço que não conte isso a ninguém, pois se meu pai souber vai me repreender por ser descuidado.

Voltei feliz para casa, tudo estava resolvido, ninguém poderia me culpar de nada, pois nem mesmo João Carlos havia percebido o furto, graças a tio Daniel eu aprendi uma valiosa lição, outro dia li em um livro a seguinte frase; “Não tenho tudo que quero, mas quero tudo que tenho” e lembrei-me deste episódio da minha infância, hoje eu vejo o quanto a inveja, a cobiça e a ambição desmedida prejudicam a humanidade, podemos ser feliz com o pouco que temos e se precisamos mais, temos que lutar pelo nosso objetivo, mas sem deixar que a ganância nos contamine.

Há alguns anos recebi a noticia que tio Daniel estava internado no hospital Conceição, um dia saí do trabalho e fui visitá-lo, chegando lá me informaram que só poderia vê-lo umas duas horas mais tarde, pensei em voltar outro dia, liguei para casa contando o ocorrido, e minha esposa convenceu-me a ficar e esperar para falar com ele, e foi o que fiz, quando liberaram a visita, dirigi-me até o Centro de Tratamento Intensivo onde ele estava, ao avistá-lo não pude conter as lágrimas que escorriam pelo meu rosto, mas ele ostentava um largo sorriso, bem como era o seu jeito, estava muito debilitado, conversava com dificuldade, contou-me de suas conquistas e de suas lutas, era Brizolista convicto, e fora duas vezes eleito vereador no município de Nova Santa Rita, conversamos sobre vários assuntos e até relembramos o furto do brinquedo, ao me despedir pediu que eu voltasse outro dia, prometi a ele que voltaria na próxima semana, mas infelizmente não pude cumprir minha promessa, pois ele veio a falecer poucos dias após minha visita.

Todos os dias eu agradeço a esta energia maravilhosa da natureza que chamamos Deus, pois ela inunda nossas almas e nossos corpos com vibrações positivas, agradeço por poder ser justo honesto e leal com todas as pessoas que me cercam, acredito que a nossa personalidade é formada por fragmentos de outras tantas que encontramos pelos caminhos da vida, as quais influenciaram nosso caráter, portanto as pessoas que cruzam nosso trajeto podem ter muito mais importância do que presumimos.

Às vezes fico pensando, se eu obtivesse êxito no furto do brinquedo?

Poderia ter feito novamente ou quem sabe até seguir uma “carreira” criminosa, mas reconheci o meu deslize e hoje sou muito grato a meu tio pela valiosa lição.

Elson Lemos
Enviado por Elson Lemos em 07/01/2018
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