Negócio Bom Pra Cachorro

Assim que aprendi a ler com certa fluência, devorava tudo o que via, revistas, jornais, até mesmo nos rótulos das latas e pacotes que ficavam expostos nas prateleiras do armazém do seu Marcio eu buscava informações, mas tudo isso perdeu a importância quando descobri a existência das revistas em quadrinhos, meu mundo ficou muito mais colorido, um colega da escola que se chamava Jorge, foi quem me emprestou a primeira, era um Zé Carioca, por ser um “Gibi” de poucas páginas eu devorei-o rapidamente, depois ele trouxe outras revistas, entre elas, Tio Patinhas, Pato Donald, Mickey e Almanaque Disney, este era o meu preferido por ter muitas histórias, era gorducho, pois tinha muito mais páginas que os outros.

Ao chegar em casa quando voltava da escola além dos livros e cadernos que transportava normalmente eu trazia comigo os “gibis” que os colegas me emprestavam, fazia os deveres de casa que a professora havia passado e depois começava a “sessão” leitura, muitas vezes passava tardes inteiras lendo, esquecia de tudo a minha volta e embarcava nas maravilhosas aventuras dos personagens de Walt Disney, mesmo sem me dar conta esta era um tipo de literatura adequada para minha idade, pois deixava de lado a dura realidade e alimentava as fantasias que toda criança deve ter na infância.

Um dia ao chegar em casa notei que havia um cão doente na calçada, notifiquei minha mãe do fato, ela sempre foi uma pessoa muito compassiva até mesmo com os animais, na mesma tarde ela acolheu o “cusco” enfermo e começou a tratá-lo, lembro que seu estado era lastimável, havia um ferimento grave em sua cabeça, poucas eram as chances dele sobreviver,

mas assim mesmo minha mãe não desistiu, todos os dias ela limpava as feridas do animal e fazia novos curativos, a cada dia notava-se a evolução do tratamento e o cão foi melhorando gradativamente até curar-se por completo, era um cachorro de porte médio e seu pêlo era castanho escuro,

com o tempo ele ficou muito lindo e passamos a chamá-lo Bobi, ele só não nos acompanhava na escola, mas andava comigo ou com meus irmãos a quase todos aos lugares aonde íamos, sempre faceiro e festivo era uma ótima companhia para nós.

Certo dia minha mãe pediu-me para buscar alguma coisa no armazém do seu Marcio, quando eu voltava para casa um automóvel parou ao meu lado e uma senhora me chamou, parecia uma pessoa educada e estava muito bem vestida.

Perguntou-me apontando para o Bobi:

– Esse cachorro lindo é teu?

– Sim senhora é meu!

Por acaso não gostaria de dá-lo a alguém que poderia cuidar muito bem dele?

– Mas ele está muito bem cuidado! – respondi convicto.

– Desculpe-me eu não quis ofende-lo, vejo que está muito bem mesmo. Gostei dele, quem sabe poderia vendê-lo?

Olhei para o Bobi, ele parecia tão feliz, pensei, a vida dele vai ser ainda melhor, acho que são ricos e tem condições te tratá-lo muito bem.

– Acho que posso! Mas quanto me pagaria por ele?

A senhora foi até o automóvel e conversou com a pessoa que havia ficado lá dentro, acho que era seu marido, em seguida voltou.

– Posso pagar cinco cruzeiros por ele, o que acha?

Minha cabeça começou a dar voltas, fiz um calculo rápido, um almanaque Disney custa cinqüenta centavos, com este dinheiro poderia comprar uns dez, pensei.

– Negócio fechado! Falei a ela.

– Aqui estão os cinco cruzeiros, agora peço que me ajude a embarcá-lo no automóvel. – falou a senhora.

O Bobi embarcou tranquilamente no veiculo e lá se foram, fiquei parado olhando até que dobrassem a próxima esquina.

Com todo aquele dinheiro na mão eu corri direto até uma banca e escolhi varias revistas em quadrinhos, gastei toda a verba que dispunha, mas trouxe todos os “gibis” que gostaria de comprar, ao chegar em casa decidi contar a minha mãe o que havia acontecido.

– Mãe! Fiz um ótimo negócio.

– Que tipo de negócio? – perguntou desconfiada.

– Vendi o Bobi! Uma senhora muito rica me disse que gostaria de ficar com ele e ofereceu-me cinco cruzeiros, então aceitei.

– Mas o Bobi não era nosso ele apareceu aqui, nem sabemos quem é seu

dono.

– Mas eu achei que poderia vendê-lo, pois ele já estava aqui em casa há algum tempo e ninguém veio procurá-lo.

– Tudo bem. – respondeu minha mãe – mas onde está o dinheiro?

– Bom... Eu gastei todo.

– Gastou?

– Sim, passei na banca e comprei todo o valor em revistas.

– Mas eram cinco cruzeiros!

– Isso mesmo, e aqui estão todas as revistas que comprei. – falei a ela apontando o maço de revistas que havia deixado sobre a mesa.

Ela balançou a cabeça como quem desaprova, mas ao mesmo tempo sorria, acho que não deu muita importância ao caso.

Passei a tarde toda lendo, olhava para a pilha de “Gibis” contente por saber que por vários dias teria entretenimento, saboreava cada quadrinho com muito prazer, mas às vezes ficava pensando como estaria Bobi, um sentimento de culpa rondava minha consciência, mas eu tentava justificar meu erro raciocinando da seguinte forma, eles são ricos poderão tratá-lo muito bem, mas de repente me ocorria que quando acabasse minha leitura não restaria mais nada a não ser o sentimento de culpa por ter vendido meu amigo, na memória a todo o momento me vinham imagens do Bobi sempre faceiro ao acompanhar-nos pela rua, muitas vezes até parecia entender o que falávamos, corria na frente, depois olhava para trás para certificar-se que íamos por aquele caminho, era mesmo um amigão.

Repentinamente perdi a vontade de ler, nada poderia abonar meu ato, me sentia o pior dos seres humanos, como é que fui fazer isso, todas as revistas em quadrinhos do mundo não me isentariam da culpa naquele momento, agora eu tinha muito que ler, mas momentaneamente havia perdido o gosto pela leitura, nada mais tinha graça naquela tarde, logo chegou a noite e quando fui para a cama o sentimento de culpa me acompanhou.

Na manhã seguinte quando minha mãe levantou, ao abrir a porta da cozinha teve uma bela surpresa, lá estava o Bobi faceiro como sempre fazendo festa para ela, ao ouvi-la pronunciar seu nome pulei da cama, corri e abracei meu amigo, como quem pede perdão por um grave erro.

O que ouve nunca soubemos, talvez a senhora do automóvel tenha se arrependido do “negócio” ou quem sabe Bobi teria fugido, também havia a hipótese que ele tenha chorado muito e os novos donos ficaram com pena e acabaram soltando-o, mas nada disso era relevante, o que importava mesmo era que Bobi estava de volta.

Por anos tivemos a companhia alegre daquele cusco amigo, um dia ele sumiu da mesma forma que apareceu, mas ainda hoje carrego na memória este fato acontecido há quase quarenta anos, entendo que pelas leis da natureza é impossível que Bobi ainda exista, mas não são raras as ocasiões em que ele me acompanha nas incursões inconscientes que faço ao passado, e ao acordar pela manhã tudo me parece tão real.

O tempo segue sua marcha impiedosa e nos leva a “cabresto” pelos caminhos do destino incerto, quantos ficaram e quantos ficarão para trás nas paginas da nossa história, mas as leis que regem a vida funcionam desta maneira e quem somos nós para questioná-las.

Certo dia ouvi um amigo empresário citar a seguinte frase, “mais um dia, mais um vintém” costumo parafraseá-lo de uma forma um pouco diferente e digo “mais um dia, mais uma lição” quando me refiro ao proveito que podemos tirar das horas de convivência com os que nos cercam, podemos aprender muito, até mesmo com quem nada sabe, pois ao ver alguém errar aprendemos que esta não é a forma correta de realizar determinada tarefa ou procedimento.

Digo isso porque ao vender meu amigo Bobi, descobri uma coisa chamada consciência, descobri também que por maior que seja o bem material que cobiçamos ele de nada vale se não pudermos deitar a cabeça no travesseiro a noite e dormir o sono dos justos, não há dinheiro no mundo que pague a honra ou o caráter de um homem, mas para podermos pensar assim, primeiro precisamos aprender o valor real da palavra lealdade.