O Despir de um amanhecer
Um beijo ainda espreguiçava-se em seus lábios, quando uma nesga de sol cantarolou em dueto com o vento, mostrando-lhe as cores que dançavam no arrebol. A beleza do alvorecer rimava em perfeita harmonia com a poesia do seu sonho. Nem sempre o sonho parecia obedecer ao descerrar dos seus olhos. As imagens permaneciam bocejando em seu corpo, tentando prolongar, o que de certo sabiam ser felicidade. Havia um sorriso suspenso, acolhendo o seu despertar, olhando-a como se desejasse fotografar cada gesto que lhe definia sensações. Abandonava-se a expressividade de seus movimentos, sentindo o contato de sua pele sobre a própria pele. Os cabelos longos acariciavam-lhe o dorso nu, provocando-lhe inusitados estremecimentos. Por alguns minutos deixou-se entregue a este ritual. Gostava de sentir o acordar de cada parte do seu corpo. Lá fora, o mundo já se agitava em compromissos sendo cumpridos. Enquanto o som do que se dizia vida, propagava-se entre buzinas e passos apressados, os passarinhos cantavam em sua janela. Beethoven invejaria tanta musicalidade.
Remexeu-se lentamente, dobrando as pernas languidamente, enquanto recortava para o amanhecer, o que lhe habitara durante o sono. Divertia-se com esta facilidade que lhe era tão própria para a fantasia. Definiam-lhe romântica incurável. Era tão inerente o seu voltar-se ao sonho, que na maior parte das vezes, a paisagem do real inibia-lhe. Em suas introspecções, via-se em caminhos, onde a maioria das pessoas, sequer cogitava ir. Era afeita a imensidões e profundidades.
Olhou em volta, procurando reconhecer-se em meio ao cenário que lhe coloria os olhares. Do lado esquerdo, na cabeceira da cama, o Soneto N.º 20 de Neruda ainda ecoava na página insone. A poesia sempre velava o seu adormecer e continuava sendo declamada, sussurrada e andando na ponta dos pés em seus sonhos. Quando lia Neruda, a memória lhe trazia um gosto de saudade e um travo de dor que lhe remetiam sempre a ele. Virou-se instintivamente. A razão já aprendera a defender-se da lembrança, ainda que não soubesse como trazer o esquecimento. O coração não se permitia entorpecer pelo tempo ou pelo sonho adiado. Perduravam elos que ignoravam decisões. Houvera um desencontro e isto lhe seria sempre uma circunstância, mas nunca um desenlace.
Afastou de si qualquer saudade, enquanto observava o dançar ritmado da brisa na cortina. Entre um passo e outro do tecido que farfalhava, a natureza deixava-se desnudar em seus olhos. Era primavera e as flores vestiam-se com seus mais belos tons. O sol agradecido por pousar em tanta beleza emitia seus raios quentes e amarelados. Quase era possível escutar o suspirar das pétalas, quando tocadas pela energia solar que lhes revigoravam, tornando-as sublimemente fascinantes.
Mirou-se, enquanto esparramava-se na cama. O enorme espaço lhe sugeria conforto e não solidão, sensação tão comum para a maioria das pessoas com as quais convivia. Não mais lhe assustava este despir-se para encontrar-se com a voz da solidão. Apetecia-lhe este estar a sós em sua própria companhia, rindo de si ou das lágrimas que se acomodavam na cumplicidade dos seus pensamentos. Não que prescindisse dos amigos ou de amores, mas a intimidade do reconhecer-se prazerosamente lhe era muito benéfica. Gostava de sentir o respirar do seu silêncio e a ânsia do esvaziar de cada palavra, aguardando o momento para ser expressa. Aprendera a valorizar este encontro consigo mesma e, quanto mais sabia de si, mais compreendia que o caminhar refazia-se a cada amanhecer.
O sonho veio-lhe à mente mais uma vez. As mesmas imagens, o mesmo rosto enigmático de traços marcantes e aquele beijo sempre doce...não compreendia como ele podia apoderar-se de suas madrugadas. Sorriu desconcertada, quando seus pensamentos lhe avisaram que não eram dele apenas as madrugadas...os dias também haviam sido rendidos por aquele encanto.
Olhou-se no espelho, ocultando do seu próprio reflexo a emoção que não podia ser expressa. Entregou cada palavra aos lábios do silêncio.
Fernanda Guimarães
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