O Vôo Inaugural
Um dia, olhando os homens, Deus resolveu chamar um e o presenteou com um par de asas. O homem não cabia em si de tanto contentamento e ao invés de voltar e dividir com os outros a dádiva recebida, caminhou freneticamente até um campo gramado e se pôs a correr desarticuladamente até alçar o seu vôo inaugural. Ia e vinha, subia e descia cada vez mais veloz e se arriscava em manobras inventivas sem se preocupar em verificar a consistência do presente recebido, ou atinar sobre seu adequado uso. Não demorou muito e resolveu fazer uma visita a aldeia onde residia, tinha que ser uma visita em grande estilo, apoteótica, capaz de impressionar a todos. Então, o homem alado bateu asas e subiu, subiu, até que a paisagem tornou-se diminuta. O fato de pairar acima de rios, vales e montanhas, o deixou extasiado. De onde se achava agora, a aldeia era apenas um ponto longínquo, quase imperceptível. Então, curvando as asas para trás, o homem alado precipitou-se numa velocidade alucinante que beirava a vertigem. A poucos metros do solo, sobre a aldeia, abriu as asas ao máximo, proporcionando um extraordinário rasante, sobre algumas cabeças confusas e aturdidas que se encontravam nos terreiros. Velozmente voltou a ganhar altura, e os aldeões, que estavam nas casas saíram todos ainda em tempo de verem a estranha figura se afastar. Ficaram assim, perplexos, cheios de indagação, até que o homem pássaro, agora bem distante, era quase um ponto que se movia vagarosamente, mas que começou a voltear até que veio vindo,crescendo,crescendo, para novamente derramar-se literalmente sobre uma platéia atônita, e apreensiva com o aparecimento dessa nova figura, misto de homem e pássaro. Durante muitos meses, esse acontecimento prevaleceu sobre qualquer assunto na aldeia. O fato, era que o homem alado continuava promovendo seus espetáculos, e o que foi novidade, começou pela ação do tempo, a cair na vala das coisas comuns. Até mesmo as crianças, que se assanhavam como pássaros em bando na inútil tentativa de segui-lo, foram vagarosamente arrefecendo o calor de uma brincadeira que por mais de um ano suplantou toda às outras.Quanto a ele, continuava imperturbável, senhor de si.O certo, foi que desde que recebeu o maravilhoso presente, nunca mais botou os pés no chão da aldeia para abraçar a família, amigos e conhecidos. Julgava-se um ser superior, e como tal, compreendia que não devia descer ao nível dos comuns. Os anos se sucederam, e a vida seguia sua normalidade até que um dia, a aldeia começou a preparar uma festa motivada pela farta colheita alcançada. Vieram convidados de terras longínquas, havia muita comida, boa música e o vinho era da melhor qualidade. As crianças se derramavam em brincadeiras por entre as arvores e tudo transcorria num clima de camaradagem até que nosso amigo alado resolveu fazer uma apresentação especial. Lá vinha ele, bem do alto, numa velocidade estonteante até chegar próximo ao povo e abrir as asas para efetuar um rasante igual a tantos outros. Dessa vez porém, ao invés de ganhar altura na mesma proporção da descida, o homem alado resolveu inovar e subiu quase na vertical até que se embaralhou perdeu o controle e veio vindo rodopiando, rodopiando, até se estatelar contra o solo num baque ensurdecedor. Homens, mulheres e crianças correram apavoradas e formara um grande circulo em torno da estranha figura que nunca haviam visto assim, tão de perto, tão frágil, diluindo-se em lágrimas, até que alguns homens avançaram sobre ele, tomaram-no nos braços e o levaram para uma das casas. Agora, passada a estranheza do primeiro momento, puderam olhar com minúcia aquela ser imóvel e não demoraram muito a reconhecer Solimar, um dos aldeões que há muito havia desaparecido e que já era dado como morto. Logo estava em torno dele toda sua família. A mãe, desesperada, não compreendia aquela transformação, não se conformava, porque logo ele, Solimar, se havia tantos outros jovens na aldeia.
O tempo foi passando, e todos trabalhavam com esmero para o restabelecimento de Solimar. As mulheres, preparavam-lhe as melhores infusões feitas a base de ervas especiais. Os meninos, perdiam-se pelo pomar a procura das frutas mais suculentas. Tudo, tudo que era possível colher ou obter, representava no fim, o produto de uma soma de esforços, uma doação que não aborrecia nem fatigava um só morador da aldeia.
Um dia, quando todos se achavam nos terreiros, Solimar saiu de dentro de casa e chamou para si todos os olhares.Veio vindo, em passos lentos porém firmes, até se posicionar diante daquela gente que se mantinha no mais absoluto silêncio.Sem expressar uma só palavra, Solimar começou a chorar copiosamente depois, um pouco mais calmo, abriu as asas vagarosamente como se quisesse envolver a todos, e os pediu perdão. Os rostos silenciosos, eram agora flores radiantes banhadas em orvalho,houve um momento de comoção geral, nunca antes experimentado. Quanto a Solimar, continuava ali, diante de todos, que podiam ver naquelas asas restabelecidas uma brancura translúcida, quase angelical. Daquele dia em diante, parecia que aldeia havia sido tomada por uma força vigorosa, havia mais fervor, homens e mulheres cantavam durante o plantio e cantavam mais ainda durante a colheita, que sempre era farta.
Algum tempo depois, os aldeões começaram a se indagar, porque Solimar que estava totalmente curado não havia voltado a voar.Resolveram então, fazer essa pergunta ao próprio, que os respondeu que tinha medo, e que estava muito feliz vivendo ali entre eles. Um dia no entanto, os homens não foram trabalhar, e juntos com as crianças e mulheres, resolveram convidar Solimar para um passeio até um campo que havia nas proximidades. Durante a caminhada, os homens mais velhos se colocaram em torno de Solimar e lhes disseram que ele não deveria ter medo de voar, e que se Deus lhe deu asas, era porque queria que ele fizesse isso, disseram-lhe ainda, que ele precisaria estipular para si um teto seguro e, que se guiasse dentro da margem do bom senso e da razão. Quando todos se afastaram, apenas o homem mais velho ficou com Solimar e, pacientemente estendeu-lhe a mão, abriu os braços e afetuosamente o abraçou com ternura e disse; -Vai com Deus meu filho,não tenhas medo, nos somos a tua família. E lá se foi Solimar, correndo,agora não desarticuladamente, mas suavemente, até ganhar mansamente a vastidão azul do espaço. Aquele sim, era o vôo mais lindo de sua vida, poderia até ser o seu vôo inaugural,até porque,ali, naquele momento, se inaugurava um novo homem, que passava a ver a vida de uma outra forma. Quanto aos que se achavam em terra, a opinião era igual, era tudo tão lindo e radiante, que as palavras não sendo capazes de expressar toda alegria foram suplantadas pelos gestos.
Não demorou muito e Solimar regressou para o meio dos seus.Na vida cotidiana, chamou para si a responsabilidade de voar ao longe e verificar com antecedência os prenúncios de tempestades, e quando elas se anunciavam, voava rápido de volta e avisava a todos, tomando parte nos preparativos para ajudar na defesa dos alimentos e na acomodação das crianças e dos mais velhos. Também era sua, a agradável tarefa de reunir as crianças sedo da noite, e em torno da fogueira lhes contar historias de terras distantes, bem como, responder carinhosamente a todas indagações.
Anos depois, Deus, na sua grande e eterna sabedoria, julgou ser tempo de novamente chamar Solimar à sua presença, o que foi feito sem demora. O senhor perguntou-lhe o que ele mais desejava, e Solimar humildemente lhe disse que se fosse do seu agrado e da sua vontade, gostaria que lhe fosse dado à oportunidade de ser igual a todo os outros. Então, recolhendo as asas de Solimar, o senhor disse;
- Solimar, tu serás feliz e todos os teus, desde que não se afastem da humildade e da bondade, diz aos homens, que não tornem difícil pela arrogância e prepotência o que é relativamente fácil. Exortas o quanto puderes, o sentido benéfico da união, porque um homem só, é presa fácil para as armadilhas da vida. E diz mais, que todo aquele que ao longo da vida for se libertando das amarras do ódio e da vaidade, e com sinceridade oferecer sua mão ou ombro para aqueles que deles necessitam, ficará tão leve, que mesmo sem ter asas, poderá planar até a plenitude.