A CEIA DE NATAL
A CEIA DE NATAL
Faltavam quinze minutos para a meia noite, quando ouvimos o sino da igreja, dar as primeiras badaladas. A igreja ficava a pouco mais de trezentos metros da nossa casa. Aquele badalar contínuo era o convite para os cristãos assistirem, a tradicional Missa do Galo, que é a anunciação do nascimento do menino Jesus, o filho de Deus.
Estávamos todos prontos, minhas irmãs de vestidos novos, a todo momento puxando a ponta da saia um pouco para baixo, diante dos olhos condenatórios do nosso pai. E antes que ele começasse algum tipo de crítica, minha mãe já foi se aproximando da porta e nos chamando a todos: -Vamos logo, minha gente, se não chegaremos atrasado. O nosso pessoal já deve estar nos esperando.
Por “nosso pessoal” ela queria dizer os parentes e, alguns amigos, que conforme o combinado, após a cerimonia íamos nos reunir para a ceia em
nossa casa.
Meu pai, que embora se rotulasse católico não ia à missas dominicais, porém, no Natal e na Pascoa abria uma exceção.
Nada contra Deus dizia. Apenas não concordava com algumas posições que a igreja tomava. Além disso era a favor da eutanásia, da pena de morte e, achava que Judas devia ser santo, assim como São Pedro. São Pedro negou Cristo três vezes, antes que o galo cantasse, para se cumprir o que estava escrito, do mesmo modo Judas traiu Cristo para que se cumprisse a escritura. Se ele não o fizesse estaria desobedecendo o Pai. Quando ele começava com essas conversas minha mãe ficava nervosa. Segundo ela, com certeza, o alto clero acharia isso uma brincadeira. Além do quê, ele não devia falar essas besteiras na frente de nós crianças. Por essas e outras meu pai não ia às missas, aos domingos.
Mas algo de novo estava para acontecer naquele Natal. Quando estávamos já à porta meu pai disse: Marta, era o nome da minha mãe- podem ir, eu vou ficar em casa.- Ficar em casa por que?-disse minha mãe- algum problema? Não esta se sentindo bem, perguntou-lhe, entre ansiosa e preocupada, com aquela repentina decisão. Meu pai respondeu com determinação e, pausadamente- Eu estou bem, sem problema algum. Podem ir tranquilos. Não tem nada de errado, é que é sempre a mesma coisa todos os anos, eu já cansei. Conhecendo papai ela respondeu – Se é a sua opinião eu respeito mas, você faz um monte de coisas praticamente iguais todos os dias, como a cervejinha, o cigarro e não se cansa nunca. Dito isso, já foi empurrando minha irmãzinha porta afora. Enfim fomos à missa sem o papai.
Quando estávamos retornando da igreja, por volta de uma e meia da manhã, vimos algumas pessoas saindo de casa. Quando mamãe estacionou o carro, eles já estavam para virar a esquina, e meu pai de pé no portão. Eram, eu acho, duas mulheres, um homem e umas quatro ou cinco crianças, entre seis e doze anos de idade. Minha mãe perguntou quem era aquela gente que ela viu saindo da nossa casa, e meu pai deu uma resposta meio evasiva- São uns pobres coitados. E começou a saudar os parentes e amigos que estavam chegando logo em seguida.
Mais ou menos uma hora depois, enquanto o pessoal continuava tomando o aperitivo, e já haviam estourado algumas champanhes, e nós as crianças já estávamos festejando os presentes de Natal, mamãe e mais umas tias começaram a arrumar a mesa para o jantar da ceia.
Aí veio a surpresa. Mamãe deu um grito de lá da cozinha, quando viu a panela de arroz à grega pela metade, a leitoa na assadeira faltava uma das pernas de traz, e dois frangos assados que minha avó havia mandado ainda à tarde haviam sumido.
Minha mãe, como era de se esperar, ficou possessa. Principalmente quando viu, que o bolo de nozes, que ela fazia todos os anos, e que era o coqueluche da ceia, também havia desaparecido misteriosamente.
No meio de todo aquele falatório, meu pai, como era de se esperar, quando minha mãe saía do sério, fez um de seus comentários lacônicos.
-Eram uns pobres diabos. Não tinham nada para comer neste Natal. E calou-se.
Por fim, com a bebida correndo solta, o trágico acontecimento, passou para a brincadeira, a gozação, e tudo acabou em festa. Meu pai acabou virando o herói da noite. O herege que havia vivido o verdadeiro espírito do Natal.
Eu e minhas irmãs, pouco entendemos o que estava se passando. Só no dia seguinte é que fomos descobrir que nós também tínhamos sido “vitimas” daquela “brincadeira” ao constatar que entre os nossos brinquedos, já usados, faltavam alguns.