DONA ÚRSULA E A CACHORRA VOVÓ

Ela chegou num fim de tarde. Ninguém soube, então, de onde vinha. Só depois descobriu-se que habitara nas imediações de um frigorífico que funcionava na região. Era velhinha, muito peluda e bastante obesa. Pesava uns trinta e cinco quilos. Desdentada, seu latido saía grave, opaco e não assustava ninguém. Caiu logo nas graças da criançada, que, de imediato, deu-lhe o nome de Vovó.

Mansa e amorosa, não se importava com as impertinências das crianças, que a derrubavam no chão, subiam nela e faziam gato e sapato. Com o passar dos meses, tornou-se uma espécie de membro da família, muito paparicada por crianças e adultos.

Dona Úrsula, a dona da pensão, administrava a crise como podia. Naqueles dias, andava às voltas com conseguir proteína animal para alimentar as bocas, que à época já somavam dez. Oito crianças e dois adultos. Por isso, a aquisição de alguns quilos de língua bovina fez dona Úrsula sorrir, o que não acontecia havia muitos dias. Cantarolando feliz, ela lavou, raspou e temperou cuidadosamente aquela preciosidade. Encheu uma bacia com a carne e a deixou a curtir no tempero. Saiu. Foi fazer outras coisas, que a vida não lhe dava tréguas.

Horas depois, quando voltou, foi verificar como estava a baciada de línguas. Aquela carne complementaria muito bem umas duas refeições para toda a família. Qual não foi sua surpresa ao constatar que a bacia sobre a mesa estava completamente vazia! Olhou em volta e localizou Vovó, com enorme barriga e uma cara de feliz!

Dona Úrsula trancou as crianças em casa, com ordens para ninguém sair, pegou uma comprida corda, chamou Vovó e andou com ela em direção ao curral. Foi tudo que pudemos ver e saber, até de noite, quando o marido chegou. Ela o chamou e disse: "Tire a Vovó do tronco! E não me recrimine! Há muito que ela vinha me roubando, mas desta vez extrapolou todos os limites!".

Ouvindo isso, as crianças vazaram por uma porta nos fundos da casa, passaram por dentro de um grande galpão e saíram em frente ao tronco. Lá, depararam com o corpo de Vovó, que balançava ao cálido e inocente ventinho de começo de noite. Dona Úrsula a enforcara. Foi um choque enorme! As crianças romperam em choro descontrolado e, por vários dias - talvez semanas -, conspiraram secretamente contra dona Úrsula, aquela malvada! Como pudera fazer aquilo com Vovó, um bicho tão querido da casa?

Todos, até este que vos escreve e entra na contabilidade da família, censuraram dona Úrsula. Condenaram-na: Assassina da Vovó! Mas, com o passar dos anos, as experiências acumuladas da vida e o balanço das perdas e danos, compreendi - e acho que cada um de nós compreendeu o ato de dona Úrsula. Hoje, à lembrança de Vovó, soma-se uma grande saudade dela, que também já não habita entre nós.

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 10/12/2017
Reeditado em 11/12/2017
Código do texto: T6195156
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.