Outro Lado
Ricardo Melo Mattos sempre fora um homem cético, completamente descrente das coisas sobrenaturais, ateu e gozador dos beatos. Houve vezes em que ele se deparou com as coisas mais absurdas que se pode encontrar, desde cabeças flutuantes a exércitos de mortos-vivos. Logicamente que não eram realmente, mas ele nem por um momento, nem mesmo quando não se podia ver qualquer explicação razoável, acreditou no sobrenatural. Ricardo Melo Mattos cético e ateu encarava agora um corpo no chão. Corpo absolutamente morto, cabeça aberta no asfalto. Corpo seu.
Não se podia entender o que passava na cabeça de Ricardo agora. Olhou para o carro que o atropelou, para o desespero do motorista, para as sirenes da ambulância, para os curiosos que se aglomeravam, para toda aquela cena. Imaginou se tudo não era um sonho, só podia ser um. E, por julgar todos os detalhes ou pela realidade das coisas ou pelas formas fixas ou por realmente não ser um sonho e saber disso, ele se convenceu que havia morrido. “E agora?” interrogou-se Ricardo. Procuraria por uma luz, esperaria algum espírito guia ou teria que viver como alma na terra? O que ele sabia disso, nunca para ele nada fora verdade. Apenas sentou-se na calçada esperando por algo.
Alguns que passavam por ele pareciam senti-lo. Os poucos que rezavam por ele não lhe surtiam efeito. “Eu com certeza irei para o inferno assim” se deprimia. Sabia que para toda religião os incrédulos pertenciam ao inferno. Pelo pouco que sabia de teologia, esperava que encontrasse Hades, pelo menos todos iriam para o mesmo lugar. A multidão se dispersou, e todos foram embora. A rua estava deserta, nem mesmo ele estava ali ou estava? Não sabia mais dizer. Deitou-se na grama e tentou dormir, mas não sentia sono. Não sentia nada na verdade, apenas aquela angústia da espera. Ousou rezar e não adiantou. Foi, então, procurar uma igreja.
Ao chegar à igreja, o padre estava terminando o sermão. Todas aquelas pessoas rezando e, se nem ele, que havia morrido, não tinha certeza qual era a verdadeira fé, como podiam elas acreditar piamente que era aquela? Tentou se comunicar de todas as formas, mas não conseguiu. Sentou-se no altar quando se cansou e olhou nos olhos do padre. O clérigo nem o sentia. Um médium! Talvez ele conseguisse fazer igual ao filme Ghost!
Entrou pela janela da casa no meio de uma sessão. Por algum motivo ele não atravessava paredes ou portas. O médium começou a falar que sentia uma presença. Ricardo se animou, mas em vão. O senhor começou a falar com outro espírito. Ricardo o procurou, mas de espírito só havia ele lá. Ou não podia ver os outros espíritos, igual ao filme O Sexto Sentido. Exato! Precisava encontrar alguém como aquele menino. Pensou um pouco mais, seria exatamente um médium. Olhou com desdém ao que gritava sentado na mesa. Deu-lhe um soco, mas não surtiu efeito. Suspiraria fundo se inalasse ar. O que fazer?
Já que não tinha idéia do que fazer ia tentar se comunicar com a família e dizer que era um espírito. Por que não fez isso antes? Talvez por parte da sua descrença? Pouco importa, ele foi correndo, já que não se cansava. Tentou de todas as formas mostradas nos filmes de passar alguma mensagem, de bafo no vidro até correntes no porão. Nada funcionou. Ele estava incomunicável com o mundo dos vivos, então resolveu curtir a sua invisibilidade.
Visitou amigos e amigas na intimidade, descobriu quem mentira para ele e quem se escondia. Cansado dos amigos, procurou as pessoas públicas. Foi saber se o Lula realmente não sabia, se um ator realmente era homossexual, se aquela atriz realmente era infiel até se cansar. Logo visitou o banheiro de uma linda mulher, a mais linda que ele havia visto, para espioná-la. Nada lhe valeu, não tinha corpo para desfrutar da imagem, ninguém podia lhe ver ou escutar para contar os segredos, e não podia se vingar. Desesperado tentou se suicidar.
Pulou na frente de carros, estacas e aviões. Na frente de bala, de faca e porrete. Passavam através dele. Por que diabos ele não podia atravessar paredes, mas tudo o que estava em movimento passava por ele? Diabos! Claro! Ele tinha que ir para o inferno, era lógico! Tinha que procurar o Diabo. Refletiu como era estranho ele estar feliz por procurar o Diabo.
Essa epifania na lhe rendeu resultado. Não conseguia encontrar o Demônio. Sentou-se na sua cama cansado, psicologicamente. Deitou-se e encarou a luz. Caminhar para luz? Por mais que pulasse não conseguia alcançar a lâmpada, imagine caminhar para a luz. Tentou atravessar todos os túneis da cidade. Procurou ajuda em todos os cultos e religiões do mundo. Ninguém notava a sua existência, salvo a poucos, mas esses nada podiam lhe fazer. Começou a chorar sinceramente e abertamente, já que ninguém podia fazer algo, e esperava uma mão que lhe afagasse, mas nada lhe veio.
Ficou com raiva, gritou o máximo que podia, mas nada. Resolveu procurar por outras almas, mas sentia-se desesperançado por que rodara o mundo e não encontrara nenhum. Foi ao cemitério e não encontrou ninguém lá, somente um lunático roubando jarros dos mortos. Começou a testemunhar acidentes, mas nenhum dos mortos saia alguma alma. Aonde iam as almas deles? Não podia vê-las ou não existiam? Seria ele a única alma do mundo? Como? Voltou para sua casa e deitou-se na cama.
Anos se passaram e Ricardo Melo Mattos nunca descobrira como ir para o outro lado. Até que visitou sua própria lápide: “Aqui jaz Ricardo Mattos Melo” foi a gota d’água! Erraram seu nome na lápide! Decidiu finalmente que não queria ter mais nada a ver com aquilo. Não queria mais saber de religião, de filme, de briga, de família, de seus amigos, de política, de fofoca, de mulher, da vida, de céu ou inferno, de cansaço, de luz, dos homens, de lágrimas, de esperança, de raiva, de ladrões, de casa, de cemitério, de lápide nem do desgraçado do filho da égua que errou seu nome! E ao não se importar mais com isso, ele sumiu.