bigodes

Bigodes

Lá em casa ninguém gostava do bigode do meu pai. “Bigode feio”. “Seu pai é muito nojento com aquele bigode”. Meu pai não ligava muito quando minha vó falava. Ele dizia “Sua vó é retardada”. Nunca direto pra ela. Só para os amigos e claro, longe de minha mãe, que também odiava seu bigode.

Era vasto e descuidado. Não aparava e muitas vezes os pêlos do nariz desciam e se misturavam com o resto. Parecia de propósito. De verdade, até eu tinha nojo. As coisas ficaram pior quando começou a engordar. Não tinha vergonha. Andava a rua inteira sem camisa com aquela barriga enorme descendo sobre as calças surradas. Encostava com uma das mãos na parede de Seu Carlos e olhava sem disfarçar pra todas mulheres que passavam. O pessoal do bar achava normal a maneira como o bigode dele apontava para o sexo das moças. Elas gostavam e antes de virar a rua sempre dava uma olhadinha. Se faziam de chateadas.

Gostavam do descuido daqueles olhos grandes sobre elas. Os outros homens, muitas vezes faziam igual. Não era natural. Eram esnobados. Não causavam grande coisa. Não se sentiam provocadas ou desrespeitadas.

Uma vez, jogando sinuca, perguntei por que ele não fazia o bigode só pra gente ver com ele era. Olhou pra mim de um jeito que nunca esqueci. Fiquei assombrado. Naquela tarde ganhou todas as partidas. Jogou humilhando. Não me deu chance. Sentia em cada tacada a opinião do seu bigode.

Quando alguém lá em casa pegava no seu pé, ele sumia durante dias. Ou noites. Ou horas. Dependia da briga. O bigode voltava bêbado e incapaz de tolerar qualquer coisa. A paz estava de volta.

Um dia voltando do bar, sentiu uma dor forte no braço. Ninguém deu muita trela, não acreditávamos muito em suas doenças. Terminou de almoçar e foi deitar no sofá. Fungando com a boca aberta. Um barulho grande tão nojento como seu bigode. De repente, nos deu um choque: Deu um grito, colocou a mão no peito e caiu no chão. Pensei que estivesse brincando. Não estava, foi a última vez que vimos o bigode de pé.

Morreu muito cedo. Foi um susto grande na rua. Ninguém esperava. “Tão cheio de vida”. “Homem tão bom”. “Coitado”. “Mas ele estava doente?” Muitas baboseiras assim ficavam no nosso ouvido.

Lá no interior os defuntos são banhados em casa. Lembro que minha avó e minha mãe ficaram horas presa no quarto com ele. De vez em quando uma delas saia pra trocar a água da bacia. Minha mãe tinha, no rosto, uma tristeza empedrada, aérea, morta como ele. Já minha avó fluía em sua tristeza. As lágrimas desciam na certeza de que podiam descer.

Lá pelas tantas, uma das duas gritou. “Já está pronto! Pode trazer o caixão, Seu Zé”. Deu um frio na barriga ouvir aquilo. Do outro quarto vi aquele homem baixinho atravessando a sala com um caixão enorme na cabeça. As duas ajudaram a descer. A porta um pouco aberta revelou um corpo nu estirado na cama.

Nessa hora sai. Não aguentei. Fui andar na varanda, acabei esticando mais um pouco e fui até a praça. Muito tempo sentado no jardim, pensando nas partidas de sinuca. Quando voltei o caixão já estava no meio da sala. Escorado por duas cadeiras de madeira, que estão com a gente desde que nasci. Velas grandes foram colocadas ao seu redor. Um cheiro morno ascendia pela casa. Muitas pessoas: Parentes distantes, amigos do bar. Alguns rostos desconhecidos.

Um véu vagabundo cobria seu rosto. Uma tristeza apertou. Também um medo vago. Minha garganta latejava. Atrás do véu eu já estava vendo o impossível. Levantei só pra ter certeza. Seus olhos exagerados de fechados, como se não quisesse também perceber. Finalmente elas conseguiram. Estava sem bigodes.

conto 2

Caminho da lenha

Manesim acordou cedo como de costume. Sabia que naquele dia sairia com pai. Iria até a mata de Maiquinique em busca de lenha. Três léguas. Faziam isso toda semana. Antigamente tinha lenha por aqui, mas agora só pra os lados da Coroa. A seca dava forte naquele tempo, meses não chovia e a paisagem amarelada dava um ar cansado à vista. Às seis horas, ainda com a gritaria da manhã, tomou seu café com broa e manteiga, dois copos cheios de café, quase derramando. Sentou-se no toco de tapicu à beira da casa e esperou. Os olhinhos se perdiam na mansidão das terras. Não conhecia outro lugar, só a fazenda Mangerona. Muitas vezes se pergunta, sem contar pra ninguém, se existia algo alem da Serra da Coroa. Nunca havia ido mais longe.

O pai chegou olhou rápido e disse: -vam’bora!

Os dois foram andando, um do lado do outro, o silêncio dava força ao vento quente. Tinha passos esmorecidos, mas com decisão. Três léguas, duas horas, ninguém falava. O pai às vezes acendia um cigarro, tossia, olhava com impaciência. Sentia vergonha do silêncio do pai, queria falar algo, ensaiava. As palavras vinham à boca, na garganta. Julgava sem importância e desistia. Fazia gesto forte como o pai no andar. Queria ser sério também. Fazia-se homem para o pai ver. Não percebia e ele desmontava de novo em sua meninice. Sentia cansado, as pernas doíam e a asma que nunca sarou direito atormentava sua andança. Mas não dizia nada, imaginava que seu pai não gosta de homem mole, homem fraco, de menino fraco. Pelo jeito do pai imagina tudo isso.

No açude de Brumado, sentia sede. Sempre paravam por ali. Descansavam um pouco e bebiam água, e muitas vezes ali o pai pergunta se queria tomar banho e ele sempre dizia sim, porque nessa hora seu pai o jogava na água. Sentia bem, sentia feliz, batia perna, batia braços e tomava mais água.

Enquanto isso seu pai sentava na pedra preta à sombra da cocheira de sal. Mais uma vez fazia aquele jeito distante e apagado, era como se tudo no mundo desaparecesse. Manesim ficava sem ação, dava um nó na garganta. Queria saber o que se passava com seu pai. Porque ficava tão quieto quando acendia o cigarro. Os olhos brilhavam mais que de costume. Sentia impotente, queria saber fazer perguntas. Mas não sabia se podia perguntar coisas assim. Seu pai era tão misterioso, não falava da sua vida, do seu trabalho, da sua mãe. Seu pai era um homem adivinhado, descoberto ou inventado. E a cada viagem ele inventava como era seu pai. Das coisas que ele gostava e o que não gostava também.

Depois de bastante tempo na água. Com os dedinhos engelhados, saiu de queixo batendo e acanhado aproximou da cocheira e disse:

- Pai, posso perguntar uma coisa pro senhor?

- O que?

- O que senhor pensa quando fica assim, desse jeito, quieto e olhando pra longe?

Olhou com surpresa pra Manesim e um sorriso hesitante apareceu no rosto. O menino ficou bem. Percebeu que o pai ouviu sua pergunta.

- Por que tá perguntando isso, menino?

- Nada pai, só pensei.

- A gente quando cresce dá conta de coisas que quando criança a gente não vê. É nisso que penso.

- Que coisa, pai?

O silêncio voltou a encontrar a seriedade do pai, não sentiu vontade de falar nada pro menino. "Cada coisa", pensou em voz alta. Abaixou, pegou o embornal e colocou no ombro.

Sentiu desrespeitado. "menino saído" – pensou. Mas um orgulho veio em sua face. Viu que seu menino estava crescendo, deixando de ser criança.

O resto do caminho o silêncio voltou a ser importante. Pela expressão no rosto do pai sentia que não podia perguntar mais nada, ficaria quieto. Andava mais solto e sentia agora importante. Teve coragem de perguntar uma coisa séria pra seu pai. Mas a frase que o pai falou ficou forte em cabeça. "O que meu pai vê que eu não vejo?”.

Impressionou bastante. Disfarçadamente esfregava os olhos, tentava abrir mais, forçava um pouco a vista. Se frustrava um pouco. Queria enxergar. "Que acontece com os olhos dos adultos que passa a enxergar mais?". "Será que a mãe também enxerga essas coisas como pai?". "E porque ela não fica pensativa como ele?" Por instantes teve medo de crescer, de ficar triste, de ter de ficar horas parado olhando essas coisas estranhas. Chegando à Mata, andaram ao redor de algumas árvores caídas, cortaram algumas toras, procuram cipó pra amarrar. Comeram frutas e Manesim ria alto enquanto olhava os sanhaços embaralhados nas árvores.

- Pai, posso fazer mais uma pergunta? Quieto o pai estava. Sem muita decisão acenou a cabeça que sim.

- O que senhor vê que eu não vejo?

Olhou no olho do menino, olhou com raiva pela insistência do menino.

Ficou nervoso, não sabia de verdade como explicar, sabia da pergunta. Entendeu a pergunta. Pensou em ignorar, ralhar como fazia sempre, mas sentiu necessidade de falar algo que mostrasse seu interesse e seu entendimento. Olhou Manesim no seu tamanho, pensou na idade dele. Durante alguns momentos ignorou sua presença. Continou fazendo força pra amarrar a lenha. De tanto apertar o cipó estourou e todo o feixe esparramou.

Não falou o palavrão de costume, mas mesmo assim o menino se assustou, esperava um palavrão, um xingo. Não veio nada, tudo ficou parado, só se ouviam na mata os pássaros e o vento empurrando as árvores.

Teve medo, e quando já estava desistindo da pergunta, o pai olha pra ele de um jeito muito diferente, os olhos amolecidos e a brabeza saiu por um momento de seu rosto.

- Com tempo, Manesim, a gente vai ficando forte e as coisas vão aparecendo. Até outro dia você não me perguntava essas coisas e agora você pergunta. Isso é uma coisa que antes você não via e agora você vê. Vejo que tá ficando homem.

- Mas você fica triste, pai.

- Quando fico triste olhando pra longe como você falou é porque estou tentando enxergar. Só quando a gente fica quieto que vemos essas coisas.

- Pai, às vezes fico quieto também!

O pai riu e não teve mais nenhuma palavra durante todo caminho. Manesim sempre na frente, com o feixe de lenha na cabeça, marchava forte e cheio de glória, pois agora via coisas como seu pai.

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Tronco caído

Amava o quintal da sua casa. Saia pela porta, percebia que o dia não chegava de repente. Também não percebia como e que horas decidia partir. E essa indecisão era vivida em seus olhos, que acompanhava cada cor, os gestos das flores e o vento, que dava à mangueira, dignidade e força. A casa grande que à tarde, escondia parte do quintal da claridade, criava uma penumbra amorosa. Era como descanso da tarde, uma parte que se afrouxou do resto, num cansaço de tanto existir.

Os muros altos, escorridos pelo tempo, restos negros de chuva, entre os tijolos, cimento esfarinhando, lagartixas corriam, em movimentos extremos e paradas bruscas, que atiçavam seu olhar incansável. Uma curiosidade pelo mistério, que ampara a existência: Um microcosmo de experiências e mortes, tragédias e partidas.

O tronco envergado doía, mas tinha paz. Suas cascas caiam e sua carne branca e riscada, aparecia sem mascaras, tessituras. Somente o bruto fino. O profundo exibido, desnudo, sem arrogância, ou do medo de se ver natureza, que em essência, está sempre partindo.

As formigas, disciplinadas em suas filas carregavam um resto de mundo, o que se soltou do resto, para um buraco mais profundo do que esse. Como se por mais que olhasse, o infinito se tornasse cada vez mais infinito, numa vastidão que partia da dor mais infame para glória mais desesperada. E seu coração, tão leve, não permitia nenhum pensamento entrar, macular, sujar o que lhe chegava pelas portas do corpo. Tudo entrava, chegava e ganhava cheiro, tudo era um nota importante pra soar acordes profundos.

Seu corpo todo estava no mundo, nada lhe foi tirado. Não lhe falaram mal das plantas, da vida, do pai, da mãe, nada. Deu lhe a vida viva, corrente, um cantiga eterna que não termina, que cria tensão e cai. Não no fundo sem passos ou esperanças, mas outro patamar, que sempre tem ar e comida, uma força pra caminhar de novo. A queda não lhe é fim, mas uma sensibilidade, pra ver melhor as borboletas, os espinhos, e as flores que de tão bonitas, deixam o peito atribulado. Percebe que pra ver as flores, antes é necessário viajar com as formigas, saber de sua fome, de seu medo, e do peso que tem o céu em suas cabeças.

Ao meio dia, tudo é eterno de sol, nada está escondido. O menino dói, porque tudo aparece, nada é mistério, as plantas vibram por dentro e ele contempla sua festa. Aguenta firme o excesso de amor. Deus absoluto, aceitando tudo. Seu quintal, nesse instante, é um céu sem as duvidas da morte. Cada cantinho tem seu segundo de existência. As veias e os sulcos da terra, o pequeno e o insignificante, ao meio dia brilham fortes, varrendo dor e solidão. Num olhar de reconhecimento, numa profunda compreensão.

Agora, nada é mais importante. A mangueira grande e solene dança com a grama, as cascas, a poça da chuva, como se uma mão invisível e evanescente, um braço de aço brilhante, abraçasse tudo. E ele olha e também se sente abraçado. No entanto, ele sabe que é passagem, sabe que a luz do meio dia, tem tempo e duração, tem a compaixão de não se fazer eterna, e o planeta parar, morrer, sem o acolhimento da noite, das águas, do frio e das pequenas mortes que a gente não sente, por ter medo de morrer junto. Do rio que corre nos cantinhos. Que só vive por ser escondido.

O menino respira com o coração, cada poro de sua pele tem também planta e solidão, seu rosto brilha como se a felicidade, mesmo que efêmera, existisse, e está nas coisas pequenas, que não aparece, justamente por serem pequenas. Sente bem e pronto pra entrar em casa, dar um beijo em sua mãe, um abraço em seu pai. Almoçar a comida que já existe, pelo cheiro que vem da cozinha. Porque depois, pela parte da tarde, precisa sair de novo, não pela porta dos fundos, mas pela porta da rua, que é a outra ponta de sua vida.