a ferida de dona maria
A ferida de Dona Maria
Tenho muito medo de ter uma ferida na perna. Dona Maria tinha uma bem grande. Dava nojo ficar perto dela. Ela me pedia pra cuidar. Limpava com vontade de vomitar. Até hoje não entendi porque eu fazia isso. Porque ela não limpava a própria perna. Toda vez, eu corria pro banheiro pra vomitar. Sabiam que eu estava passando mal e nem se mexiam.
Ela deveria limpar, ou mandar a filha bonitona, que nunca se rebaixava. Muitas vezes a Dona Débora, esse era o nome da filha, fala pra mim: “Não fique lá fora. Eu não volto hoje. Você cuida de mamãe”. Eu ficava empatado ali a tarde e a noite toda. E dona Maria só me gritando: “Traz água”, “Abre mais a porta”, “Pega mais água”. Quando achava que estava livre, ela falava, segurando a minha mão: “Fica aqui comigo até eu dormir”.
Com uma raiva eu sentava na cadeirinha do lado. Quando ela parava de se mexer, eu começava levantar, ela gritava, com a voz afobada: ”Eu não dormi ainda”. Não entedia porque ela me queria tanto a disposição dela. Eu tremia de ódio.
E tinha essa ferida na perna dela, que quando ficava tudo parado, a única coisa que sobrava era o cheiro, que de tão ralo, entrelaçava no silêncio. Com a vida passando e Dona Débora cada vez mais livre nas noites e também nos finais de semana, o silêncio aumentava e todo dia eu era obrigado a limpar a perna de dona Maria, que quase não falava mais. Só dava grunhidos e pedia coisas.
Eu fui morar com Dona Maria, porque precisava estudar. Foi Dona Débora que convenceu minha mãe. Que um menino como eu não podia ficar sem estudos. Disse que cuidaria de mim e me faria ir pra escola. Olho pela janela e vejo crianças descendo de calça azul e camisa branca, conversando muito e dando risada. Acho que ela só me trouxe pra ficar com dona Maria. Porque até hoje não fui à escola. Quando voltava das noitadas
e dos finais de semana, falava que me adorava, que gostava muito de mim. Que eu fiz um bem nadado. E sente que tudo está ficando melhor, desde que eu cheguei.
A única coisa que ficou boa foi sua vida. Que podia sair. Eu ficava cuidando da mãe fedorenta, que ela não queria chegar perto. Todo dia vomito. Quando pego o pão com minha mão ou um pedaço de carne, fico pensando nojeira. Penso na ferida de Dona Maria e na vida boa de Dona Débora.
Dava uma saudade de casa, uma vontade de ver minha mãe e meu pai. Muito tempo pensando nos meus irmãos, que já devem ter crescido mais. No dia que vim pra cá, Dulinho me pediu pra medir ele na porta. Agente fazia isso todo mês. Tinha vários riscos que aumentavam pra cima conforme ele crescia. Era sempre impaciente, queria logo ser grande como achava que eu era. Contava nos dedos e no caderno o dia de medir novamente. La também tinha os riscos de Lili que crescia mais rápido. As marcas dela era bem mais grossas. Eu fazia assim pra diferenciar das marcas de Dulinho, que eram fininhas e quase colocadas umas nas outras, que sempre foi mais lerdo pra crescer. Já tem vários meses que não sei deles e de seus tamanhos.
Minha preocupação era com Dona Maria e com a folga da Dona Débora. Não parava em casa. E quando voltava, a única coisa que trazia eram gazes e mertiolate.
E essa casa era muito triste, não tinha televisão e nem rádio. Na minha casa tinha tudo isso. Uma televisão que era muito velha, mas dava pra assistir e um rádio que meu pai sempre levava pro trabalho, mas a noite trazia de volta e ele deixava a gente mexer.
E tinha os meninos, meus amigos da rua, as brincadeiras de esconde-esconde e amarelinha. Era gostoso. Não faltava coisa pra fazer, era brincadeira o dia todo se eu quisesse. E a noite, a gente sentava ao redor de mãe Marilda e ouvia suas histórias de mistérios. Todo mundo ia dormir com medo. Olhando com cuidado pra tudo. Porque de todo lugar parecia sair um bicho.
Aqui não tem nada disso. Só a ferida de Dona Maria, que estava sempre se sujando e fedendo. Não sei de onde vinha esse fedor. Porque eu limpo todo dia e o cheiro não passa. E fica pior, misturado assim com cheiro de álcool. Parece que o fedor vem de dentro dela.
Deu muita raiva quando ficamos sozinhos na casa durante quase quatro semanas. Dona Débora viajou e não disse quando voltava. Simplesmente saiu com malas grandes e sacolas. Eu e Dona Maria, quase trancado, porque eu não podia sair e ela gritava a toda hora, queria muito minha companhia. Meu medo foi virando terror. Imaginava se a filha dela não voltasse mais e eu ficasse pra sempre como cuidador. E não tinha como eu falar com minha mãe e meu pai. Eu não sabia como voltar pra casa ou telefonar. Não conhecia nenhum vizinho. Depois de duas semanas não aguentei mais. Encontrei no molho principal a chave do quarto de Dona Maria.
Tranquei ela durante umas duas horas e não ouvia mais o que ela queria. Nessas duas horas eu pude ir à calçada e conversar um pouco com o pessoal da prefeitura que tirava as gramas que nasciam na rua. Nos segundo dia, tranquei mais um pouco. Dessa vez, de manha até meio dia.
Na hora do almoço esquentei a sopa e enquanto ela comia eu passei um pano em seu rosto, que estava muito suado e lavei a perna com um pouco de álcool. Cada vez falava coisa que não tinha sentido. Não entendia nada, porque quando estava com ela tinha que estar congelado, quase sem respirar. Era nojo e medo, tudo misturado.
E todo dia trancava mais um pouco. Pra piorar, coloquei um pano embaixo da porta, para que pudesse vedar tudo quanto é som que ela mandava. Nesse tempo conheci mais gente na rua. Sentia mais livre. E fui fazendo cada vez mais isso.
Finalmente, teve um dia que me dei folga o dia inteiro. Não abri a porta uma única vez. No dia seguinte, também não abrir. Não era maldade não. Era medo de como estava
mais fedendo e de como eu vomitaria muito mais. E decidir ficar mais um dia com ela trancada.
Foi passando os dias. Não ouvia mais nada na casa. Só o cheiro que aumentava de um jeito insuportável. Tudo era silencio e fedor.
Uma semana, duas semanas, três semanas. O fedor, quase eu não sentia mais de tão forte. Passei a ficar durante o dia sentado na rua, ou no quintal, onde passei a dormir numa rede. Teve uma noite que acordei assustado, com muito medo mesmo. A casa toda escura e aquele cheiro de podre por todo lugar. Fui até a porta de seu quarto e chamei alto: “Dona Maria! Dona Maria!”. “A senhora está com fome? Ninguém escutava, ninguém respondia. Tudo era o cheiro, que parecia esgoto ou carne estragada. Nem eu conseguia mais comer. Reparava que quando as pessoas passava na calcada da casa, se afastavam ou colocavam a mão no rosto.
No dia que Dona Débora chegou. Estava apavorado com medo dela. Olhou pra mim com os olhos faiscando. E perguntou se foi eu que tranquei sua mãe lá dentro. Eu disse sim com a cabeça. Ela devolveu olhar. Com um sorriso disse que segunda feira me matricularia na escola.