O DILETO SENHOR

Seu Ignácio era querido por todo o bairro do subúrbio. Não havia ali quem não o conhecesse, quando passava buzinando com seu carrinho de picolés, que as crianças, ávidas, corriam para comprar.

Dava-se com todo o mundo, era expansivo, alegre. Conversava generoso com as comadres que ficavam nos portões dos casebres, com os donos das mercearias, da quitanda, com Seu Onofre, que tinha inflamação nos pés e que não podia andar. Aconselhava Onofre, pedindo para que repousasse e se cuidasse, tomasse os medicamentos. Tinha sempre uma palavra amiga, alentadora e secreta para as questões dos outros, das senhorinhas quanto às desavenças familiares, aos filhos que as deixavam. Contava sempre uma anedota para alegrar o ânimo dos negociantes que não tinham suas mercadorias entregues no prazo ou que perdiam as verduras e os legumes para as más chuvas, ou quando a demanda era pequena. Tempos difíceis eram aqueles de crise econômica no Brasil de todos nós!

Mas, para Ignácio, apesar da idade, atualizadíssimo, acompanhando as notícias pelos jornais, havia sempre uma palavra de esperança a se dar, que nunca desistissem de seus sonhos, que um dia tudo iria melhorar, que tudo às vezes para melhorar precisava era piorar; e que, no final, dá-se certo, que levassem a vida adiante, sempre, sempre marchando em frente não importando o que abatesse. Era de uma sabedoria esse Senhor Ignácio.

Mas tinha ele uma tragédia particular da qual pouco falava aos colegas. É que perdera uma filha ainda moça, a flor da idade, aos quinze anos, para a rubeola. Seu nome era Rita de Cássia. A esposa, a senhora Maria José, também falecera há dez anos, e agora ele vivia só em seu pequeno lar, entre as folhagens do jardim que cultivava, grande e de estriadas rosas, entre vasos de samambaias, trepadeiras, ciprestes, tudo harmoniosamente aninhado e convivendo bem no pequeno espaço. Ignácio sabia dos segredos da natureza, pois antes de sorveteiro, durante longo tempo, longos verões daquela terra quente, trabalhara na lavoura com a família. Sabia o momento certo de podar cada ramo, o tempo preciso de cada fruto, de cada broto arrebentar, a estação paciente de cada semeadura.

Sua casa é que andava um pouco desarrumada: latas de comida abertas, copos usados pela pia, teias de aranha e poeira se acumulando por todos os lados, por cima da mesa onde raramente comia seu pão com manteiga e queijo e tomava seu pingado, ultimamente dando para serem essas umas de suas únicas refeições. Por vezes também se atabalhoava procurando alguma conta de água a pagar, sem saber se deveria levá-la ao banco ou se já estava quitada... Também se atrapalhava sobre qual era o lugar onde deixara a caixa de remédios para a pressão alta que tinha. Perdia por vezes os números telefônicos dos filhos que, ao lhe telefonarem, como faziam raramente, tinham de dar-lhos novamente. Seu Ignácio ficava muito ansioso com isso, perturbado, não queria incomodar os filhos, ora, fora a crescente falta de controle sobre seus próprios atos...

Na realidade, seus quatro filhos, dois homens e duas mulheres, não se importavam muito com o pai idoso. Na verdade não tinham a menor paciência para cuidarem dele, a pretexto de “falta de tempo e excesso de trabalho”. Por isso, ele, que sempre havia sido um bom pai, sentia um aperto no peito. Mas o que poderia fazer? Forçar os filhos a virem visitá-lo? Preferia deixar, como sempre fizera, que viessem espontaneamente. E, se fossem à casa dele hoje --- fazia três meses que a filha mais velha, a que mais comparecia, não vinha --- veriam, por exemplo, muitos alimentos estragados na despensa, o fogão sujo, roupas pelo chão da sala, montes de terra que ele acumulava dentro da sala para cultivar suas novas espécies vegetais.

Foi quando, numa manhã, após ter ido se deitar muito tarde e ter-se levantado muito cedo, saiu para o quintal como era de hábito. Mas, estranhamente, sentia algo diferente naquele dia, como se uma voz lhe pressagiasse algo, talvez através do vento fresco da primavera, talvez pelo farfalhar das asas das borboletas, amarelas e brancas, que passavam diante de seus olhos. Concentrou-se tanto em si quando notou que um inseto, de cor verde e pintas pretas, lhe pousou entre os dedos calosos e enrugados. Era a primeira vez que via um inseto daquela espécie! Era como se, de repente, rejuvenescesse, respirasse fartamente o ar que lhe sopravam no rosto. Perdeu a ideia de quanto tempo ali permaneceu, parado, num estado de profunda calma. E, por fim, nenhuma preocupação mais teve durante aquele dia, com os papeis a pagar ou com outras coisas que, de súbito, perderam o peso, a importância, a turbada linguagem para ele.

Um luxo ainda lhe aconteceu para aumentar sua alegria: uma doce mariposa pousou brevemente sobre sua camisa de linho, afavelmente, como se lhe quisesse dizer algo, antes que batesse suas asas e fosse se esconder em algum canto dos grossos caules da trepadeira jade. Ele sentia, pela primeira vez, que uma mariposa o amava, não se afastava dos movimentos dele.

Pois foi assim que, de súbito, ou premeditadamente, três dias depois, o noticiário da televisão ligado durante a noite chamou atenção dos vizinhos. --- Ah, pobre Ignácio!, disseram ao arrombarem as portas de ferro e verem o homem ali, jazido na grande poltrona... Dona Lucinda, talvez a última de suas amadas, diria, meses depois, condoída, saudosa... : “Estava sereno, parecia um menino que dormia após um dia inteiro de brincadeiras...”

Para ele certamente foi um momento maravilhoso, de libertação. Tão querido era nas redondezas que um cortejo fúnebre atravessou a cidadezinha inteira, sob os olhos muito atentos dos populares, até o cemitério central. Toda a gente e parentes compareceram, estes últimos aparentando pena, dando o “último adeus” e rogando a benção dos céus para este homem tão afamado pelas redondezas. Sua alma, alguém ali no meio poderia até suspeitar, vivia, e Ignácio estava em paz, sendo amado, aliviadíssimo.