Os Pés aliçais
“The only way to get rid of a temptation is to yield to it. Resist it, and your soul grows sick with longing for the things it has forbidden to itself, with desire for what its monstrous laws have made monstrous andunlawful.”
Oscar Wilde, “The Picture of Dorian Gray”
Estou obcecado por ela. Esta foi a conclusão a que cheguei um mês atrás quando visitava o meu amigo André em sua casa. Éramos amigos de longa data, amigos de infância, e sempre tivemos uma ótima relação. Nos conhecíamos, pode-se dizer, desde sempre.
Naquela noite eu havia trazido um excelente vinho italiano e, entre um trago no cigarro e outro no vinho, lançávamos ao vento uma conversa agradabilíssima. Ali, em meio àquele ambiente familiar e acolhedor, eu cheguei àquela constatação: eu estava deveras obcecado por ela. Ela? Sim, ela, a esposa de André  --  naquele momento percebi que desde que a conhecera, quando voltei de minha viagem à Europa há três meses e encontrei André casado, não consegui mais tirá-la da cabeça. Ela surgia na minha imaginação, no meu pensamento, na minha intuição. E eu lutava com todas as forças contra a vil traição que se insinuava em meu peito. Luta vã, porém.
Pobre do homem que luta contra uma ideia fixa. Ele se debate, usa todas as forças, tenta escamoteá-la de todas as maneiras possíveis, mas a ideia sempre volta. Sempre e mais uma vez até que ele ceda. Então a ideia desvanece e ficam as consequências. Talvez de uma constatação análoga Oscar Wilde tenha tirado a frase que serve de epígrafe a este escrito. Mas por que Alice — o seu nome era Alice — me havia enfeitiçado?
Antes uma pequena reflexão. Há no mundo tantos fetiches como há homens. E nunca haverá marqueses de Sade em número suficiente para catalogá-los todos. E pior: cada um pode possuí-los aos montes, sendo que, em cada momento da vida, haverá um fetiche dominante rondando, qual espectros de utopias sanguinárias, a alma do mais puro dos seres humanos. Alguns estão aptos a exorcizá-los, outros rendem-se escravizados. Este último era o meu caso. Rendi-me. Minha alma rodava em torno Alice. Minto, dos pés de Alice. Sim, os seus pés. Aqueles que eu notei desde a primeira vez. Pés bem feitos, dedos pequenos e delicados, pés feitos para o amor.
Mas aqueles eram os pés da esposa do meu amigo, como podia eu pensar neles com tamanha lascívia? Persignei-me, pedi aos deuses que tirassem de minha cabeça aquela ideia fixa, mas como toda boa ideia fixa, ela permanecia e cada vez ocupava mais espaço no meu pensamento. Machado de Assis escreveu certa vez que “há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam”. Os pés de Alice, minhas moscas teimosas. Moscas compromissadas, moscas do André.
Naquela noite, eu dizia, após compreender minha própria obsessão, inventei uma desculpa esfarrapada, uma dor de cabeça ou algo assim, e fui para casa, deixando o casal atônito com minha repentina mudança de ânimo. Ao chegar em casa, com as mãos trêmulas e um aperto no peito, pensei em escrever a André confessando tudo e explicando que não poderia continuar frequentando sua casa naquela situação. Pensei, mas não escrevi. Peguei o papel, a caneta e, ao invés da carta ao meu amigo, decidi escrever um poema para Alice. Minto, para os pés de Alice. Deitei sobre o papel o primeiro verso:
"Pudesse um dia a teus pés lançar-me…"
E parei de escrever. Na minha imaginação o poema continuava a desenvolver-se mais e mais numa espiral erótica de tercetos que nunca encontrava l’amor che move il sole e l’altre stelle. Era o Cântico dos cânticos da podolatria. Pudesse o Glauco Mattoso ler a minha cabeça naqueles momentos e estou seguro de que atearia fogo ao seu Manual do Podólatra Amador, considerando-o obra menor diante do primor de poesia podólotra que contemplaria na minha caixola. Não escrevi o poema. Nunca o escreverei. Não escreverei porque nunca se escreve nada. Porque o que devia ser escrito está sempre dentro, onde a língua não alcança (um amigo solerte acrescentou ao ler esse trecho: “e onde o sol não bate”. Deixo aqui entre parêntesis a malícia desse amigo que tão pouco caso fez dos meus sentimentos. Fazer o que? A chacota também é deste mundo). De resto, minha obsessão pelos pés de Alice só crescia, e eu era incapaz de fazer qualquer coisa que não fosse pensar neles. Pés de Alice, pés aliçais! Diante daqueles pés aliçais giravam meus desejos abissais. Eu olhava bem dentro do Abismo… ah, Pascal! Basta de lirismo, leitor, vamos ao desfecho desta história que já começa a aporrinhar-te.
Desde aquela noite não a vi. Evitei ligar, escrever, enfim, fiz de tudo para não encontrar André ou Alice. Até esta manhã quando eu saia do supermercado. Vi Alice que vinha pela rua sem dar por mim. Num átimo, notei que usava sandálias bem abertas exibindo toda a voluptuosidade daqueles divinos pés.
Alice me viu. Olhou para mim, fez um aceno e… caiu. Tropeçou em algo, torceu o pé, não entendi muito bem o que houve, apenas afirmo que ela caiu. Em um instante eu estava ao seu lado, socorrendo-a. Disse-me que machucara o pé direito. Apressei-me em tirar-lhe cuidadosamente a sandália. Creio que ela não percebia a tempestade de desejos que rebentava em meu peito. Eu mexia o seu pé para lá e para cá, em movimentos delicados. E perguntava: “dói aqui?”. “Um pouco”, respondia Alice. Minhas mãos deslizavam deliciosamente do calcanhar para os dedos, explorando cada ponto. Passei assim alguns minutos massageando-lhe o pé direito, sentado ao seu lado na calçada, esquecido do mundo. Alice, enfim, estava bem. Ajudei-a a levantar-se. Conversamos por uns minutos, mandei lembranças a André, combinamos um jantar em minha casa e então nos despedimos.
Eu já não pensava em seus pés.