********************

O lugar marcado era um bar em frente à uma famosa boate GLS que ficava perto da orla da barra. Quando cheguei ainda era cedo... fiz o caminho assistindo o sol se pondo pela janela do ônibus. Era um bar pequeno e as cadeiras eram postas do lado de fora. Não pude deixar de pensar que se caísse uma chuva a noite estaria arruinada... para quase todo mundo.

As cadeiras e mesas eram de madeira e pareciam desconfortáveis ao meu gosto. Fui criado por meus avós e eles tinham muito dinheiro e muitas regras. Aquele lugar fugia ao meu padrão e ao meu conforto, mas eu não estava de fato me importando com isso. Estava ansioso demais...

A garçonete – que era apenas uma mocinha – se aproximou pondo a mão em meu ombro. Não gostei de tamanha intimidade, mas ela cheirava muito bem. Era ruivinha, sardenta e muito branca. Pálida, na verdade. Sua pele se contrastava com tatuagens que pintavam seu belíssimo corpo. Eram tatuagens bem-feitas e bem humoradas. Tinha uma Mafalda em seu braço direito e um Snoopy no esquerdo. Tinha também uma fada na perna que estava avista apenas pela metade, escondida pelo shortinho bem curto.
"Que raio de lugar é esse em que a garçonete se veste assim?". 

Ela também tinha uma lágrima azul tatuada na face bem abaixo dos olhos. Não são assassinos que pintam lágrimas nos olhos? Pensei, quase rindo...

- Já sabe o que quer? – Ela perguntou sorrindo e acariciando meu ombro.

Eu não sou besta. Eu não estava recebendo tratamento especial. Toda aquela sedução era apenas um papa-gorjetas.


- Uma coca, por favor. E... Um desses sanduiches... Qual você sugere?
- O de frutos do mar é especialidade da casa!
– Ela respondeu sorrindo e piscando pra mim.

Me senti por alguns segundos hipnotizado pelo cheiro dela.


- Que seja, então. – Respondi abaixando a cabeça, como se o que quer que houvesse no celular, fosse mais importante do que ela.

Como se o encanto tivesse acabado ela recolheu bruscamente o cardápio de minhas mãos e saiu com pressa. Ri sarcasticamente por dentro.

********************

Passaram-se quase duas horas... meu coração estava acelerado. Talvez seja melhor ir embora. Não... agora já estou aqui. Não tem como voltar atrás.

Na noite passada tive um sonho. Eu ia saindo de casa e vovó segurava meu braço com força.


- “Não vá...” – Ela dizia.
- “Ele me procurou... não é nada demais, vovó. Nada que ele possa dizer vai mudar minha vida.”
- “Mesmo que ele nada queira de você, ele...”

Como se alguém tivesse mandado ela calar a boa ela interrompeu a frase e soltou meu braço. E então acordei.

********************

Tirei do bolso a carta assinada, toda amassada. Era meu pai. Dizia apenas: Está na hora de a gente se conhecer, se concorda comigo, esteja neste endereço amanhã às 19h.

Mas o estranho eram as iniciais no final da página.
“B.H.”. Ora, aquelas não eram as iniciais de meu pai. Será que tinha mudado de nome? E se não fosse mesmo ele? Mas havia algo em meu coração que me dava toda certeza de que era ele.

Como era de se esperar – com a sorte que tenho – começou a chover. As pessoas se levantaram e correram sem pagar suas contas espalhados por todos os lados. A linda garota ruiva e branquela, gritava e tentava em vão alcançar os clientes que não pagaram, mas tudo que conseguiu foi ficar encharcada. Seu cabelo molhado escorrido pelos ombros a deixava ainda mais bonita. Quando ainda chuviscava eu me levantei calmamente e me posicionei no pouco espaço coberto que tinha no bar. E lá aguardei o toró. A ruivinha passou por mim e acho que eu estava com um ar de superioridade por não ter me molhado, pois ela me olhou com uma certa antipatia nos olhos.
 
********************

Já era nove e meia e eu estava a ponto de cochilar sentado. O bar estava ficando vazio e as mesas molhadas. Uma fila se formava na porta da boate. Eram homens e mulheres, alguns bem estereotipados, mas a maioria estava com a mesma cara de fila grande que vejo quando estou na casa lotérica ou na farmácia. Uma mulher com longos cabelos ondulados e negros surgiu junto com um saxofonista. Usava um vestido branco e saltos muito altos. As pessoas na fila não se importaram com ela, como se não a vissem. E ela também não parecia se importar com seus olhares ou com a falta deles.

Sei que eu, curioso que sou, virei minha cadeira em sua direção aguardando algo muito bom, - ou algo muito ruim - mas com certeza alguma coisa interessante de se ver num sábado à noite. O saxofonista começou a tocar e de repente ela pôs delicadamente sua voz aveludada por cima, que crescia a cada nota que vinha. Era uma voz linda e eu estava intrigado com aquelas pessoas que simplesmente a ignoravam.


- Essa música não me é estranha. – Eu disse a garçonete que se aproximou para me trazer mais uma lata de coca.
- É... Ela sempre começa com essa... Há uns vinte anos que ela não muda o repertório, é o que dizem.

É por isso que ninguém está dando a mínima. Todos já ouviram... enumeras vezes. Pensei.

- Acho que conheço essa... Só não lembro de onde.
- É
“Lady Sings The Blues”! E ali é a "Billie"!! Ou pelo menos, a versão TRAVESTI dela... – Disse a menina com um jeito desdenhoso.

Emudeci... era ele!!! E ele, ERA ELA. Era meu pai! Por isso na carta as iniciais eram
B.H! B.H de Billie Holiday!

Ela cantava a bela música olhando para mim com olhos tristes de diva sofrida. Fiz um discreto aceno com a cabeça apenas para dizer:
"Eu sei quem é você... sei quem era você...

E ao terminar a música algumas poucas pessoas aplaudiram. Eu me levantei e aplaudi energicamente e gritei bravo! várias vezes. Ela acenava para todos em sua volta, sorrindo glamourosamente. Por fim atirou um beijo em minha direção.

Um menino surgiu do nada e lhe entregou uma rosa.
 

- Ele sempre paga um pivete pra levar a rosa e ... – ia dizendo a garçonete...
- ... um talento... - interrompi. –Incompreendido... – Completei, com imensa tristeza na voz e nos pensamentos.

A mocinha deu de ombros me mostrando o quanto não se importava com o assunto.

Eu ouvia essa música na vitrola todos os dias quando era bem pequeno... papai ligava a vitrola quando chegava do trabalho e era isso que tocava, todos os dias... eu achava chato na época.

Meu pai, pôs-se a cantar a mesma música novamente em meio a vaias, protestos, e alguns poucos sorrisos e aplausos.

Ao terminar seu número, tirou os sapatos e saiu descalça, dando as costas pro público e indo embora em passos apressados...