DOIS QUINTAIS

Dois quintais

“O que ela está falando Raimunda?” “Que seu saco é murcho, meu velho”. Seu Joaquim respondia “ah, sim”. E saia andando devagar pro quintal. Minha vó falava pra ela com jeito triste. “Porque você faz assim como ele dona Raimunda? “Quem manda ser surdo e querer escutar conversa dos outros?”. Era sempre assim na casa dela, ela fuxicando das vizinhanças e seu Joaquim, que era surdo, tentando escutar. Dava um sentimento dele. Nunca conseguia escutar. Levava uns xingos. Mas parece que nem sequer notava.

Os fundos da minha casa davam pro quintal deles. Era separado por uma cerca velha de arame farpado e uma mangueira estropiada, que durante alguns meses do ano enchia nossa barriga. Principalmente quando chovia. Só ouvia os barulhos fortes das mangas verdes caindo no chão molhado do quintal e a gente correndo embaixo de chuva.

Quase todas as tardes depois do café, lá pelas quatro horas minha vó passava pelo cantinho da cerca , pra prosear com dona Raimunda. Do lado cá via as duas conversando, as vezes escutava uma gargalhada gostosa delas. Seu Joaquim inquieto espichando os ouvidos pra perto delas. "“ O que você esta querendo ouvir? ”. Dava um constrangimento danado na gente, tudo de pena do velhinho, que não tinha mais nada na vida, só o quintal e as conversa daquelas duas. “Continua do mesmo jeito. Ficou surdo e continuou mal educado”.

Dona Raimunda torrava café pra fora. Tinha encomenda todos os dias. De tarde o barulho do pilão e aquele cheiro forte espalhando até perto da feira. Batia a mão de pilão num mesmo ritmo. Cantava umas músicas do tempo que morava na roça. Coisa antiga, minha vó distraia e também acompanhava com assobio. Parava quando dava por fé que eu estava olhando. As duas eram tão juntas como o nosso quintal.

Uma coisa que gostava muito era da poeira que subia e atravessava a cerca, quando ela varria o chão, seca de pó, com vassoura de piaçava, só o toquinho de tão usada. Fechava a tarde regando as plantinhas que avizinhava da cerca e deixava a divisa do quintal todo bonito de amarelinho.

Do lado de cá, minha vó lavando roupa, do lado de lá dona Raimunda torrando café e as cantorias que hora se confundiam. Não dava ao certo pra saber quem começava. Os dias quentes, secos, eu no quintal assistindo tudo. Convivendo de perto com vidas já muito vividas. Mulheres nos seus afazeres e aquele homem sem nada mais a escutar. Cansado e quase fora do lugar que estava. Cabecinha perdida, cabelos brancos, no meio de andanças que de nada era revelado. Só dava pra saber dele, quando as duas pareciam cochichar e ele se aproximava buscando novidades ou quando dona Raimunda batia no seu ombro e dizer que já estava anoitecendo, ou quando o almoço ficava pronto. Era um estado conhecido apenas pela noite ou pela fome.

Teve um dia, que nada daquilo aconteceu. A notícia correu pra toda rua, como o cheiro de café chegou até a praça. Seu Joaquim tinha partido. Foi uma quietação o dia todo no quintal. Não tinha aquelas cantorias, tudo que tinha era um silêncio que alcançava tudo, baixava em tudo até nas plantas e na terra. Choveu, assentou a poeira. Da mureta lá de casa via o outro lado, que nem parecia a mesma. O cheiro de café foi embora, a única coisa que aparecia era o aroma de terra molhada. De poeira molhada, que subia conforme a chuva, que vinha de pancada fazia a gente sentir, mais forte ainda, como tudo pode mudar rápido.

Minha vó foi pra lá e toda gente da rua. Eu não fui. Fiquei no quintal, como fazia todos os dias. Olhei tudo aquilo, mas era tão diferente. A paisagem mesmo sem mudar, não tinha música, o cheiro de café, o barulho do pilão empurrado pelos bracinhos fracos de dona Raimunda. Só alguns visitantes do enterro que vinha na porta dos fundos ver o quintal.

Depois tudo ficou diferente, dona Raimunda parecia agora tão velha como era. Deixou de torrar café. Ficava agora no quintal, como seu marido. Sentadinha no mesmo canto que ficava, cabeça baixa perdida, numa solidão que deixava meu coração todo apertado, uma vontade de chorar. Minha vó ia até lá, passava pelo canto da cerca, encostava perto dela, não tinha uma palavra que valia. Colocava a mão na sua cabeça dizia que a vida era assim, que tudo estava bem. Ela só levantava a cabeça agradecendo, olhinhos de água. Minha vó ajeitava os cabelos dela que era tão penteados e, agora por cima da testa, tapavam os olhos e deixava ela mais longe de nossa vista. Dona Raimunda foi ficando cada vez mais parecida com o marido. Quietinha, sem escutar mais nada desse mundo.