óculos amarelos

Quando criança a vida passava sempre fora de mim. Era um filme ininterrupto, sem mistérios. Tudo exposto, sem delongas. Se não me dava prazer, me dava o saber das coisas. Sem a excitação da descoberta.

O que tinha era o choque e o terror de não ter inocência. Uma estranha doença me impediu de falar até aos oito anos. Não falava com a boca

e nem com o corpo. Nada de expressão. Era como um jarro. Aconteciam

fatos e assuntos ao meu redor e ninguém fazia questão de me esconder.

Acredito que me achavam desprovido de qualquer inteligência.

Segredos não existiam. Não existia a revelação, existia apenas os olhos queimados de tanta vida desfilada. A coisa mais pertubadora foi quando minha mãe me levou até a casa do amigo dela, um homem que em outros tempos fez alguns trabalhos em casa. Com a porta aberta ela gritava no quarto, eu via os movimentos e a baba que descia em seu pescoço. Depois do barulhos os dois dormiam. Perto da noite ela tomava banho e sempre chegava em casa falando de como o parque estava cada vez mais bem cuidado.

Meu pai era um homem seco e sem prazer. Não tinha boa conversa e raros amigos que nunca visitava. Quando não estava na igreja, estava no quarto rezando, pedindo a Deus alguma coisa. Conversava comigo de vez em quando. Sabia que eu não entendia. Fazia planos de ir embora e me contava do erro que foi ficar junto dela. Pra ele, tudo era provação de Deus. Quando falava essas coisas um estranho sorriso riscava sua boca. Um alegria contida e proibida que me assustava tanto quanto os passeios que era obrigado a fazer em quase todas as tardes.

Todos preservavam o ambiente. Como se fossem culpados em falar ou estar alegre. Era uma igreja. Barulhos eram proibidos. Ao mesmo tempo nada podia e tudo existia. Na hora do almoço ela colocava meu prato antes de todos, me conduzia até o quarto e ,com colher presa forte a mão, levava a comida a minha boca. Olhava fixo nos meus olhos. Podia ver todo trajeto da colher. Era lento e previsível. Ela decidia quando minha fome acabava. As vezes duas ou três colheradas e saia pra sala. Sobrava pra mim a parede, que eu conhecia inteira e pra cada manchinha ou buraco eu inventava uma história, geralmente pequenas tragédias. Ficava assim até alguém se lembrar de mim. Eu não sabia ainda que era possível sair dos lugares.

No final do ano meu pai foi embora por uns tempos. Logo minha mãe inventou uma reforma. Chamou o amigo dela. Agora não tinha mais passeios à tarde. O amigo dela passava quase todo tempo em casa. Ele obrigou ela e me colocar na mesa junto com eles na hora do jantar. Não queria me ver sozinho no quarto. Pegava eu no colo e me colocava à mesa. Não deixou mais minha mãe me dar comida. Ele fazia isso agora. Só ia para o quarto a tarde, no mesmo horário que antes. Depois de algumas horas ele aparecia com um monte de balas na mão. Minha mãe continuava a dormir depois do barulho. Pelo começo da noite sabia que ela tinha acordado por causa das panela batendo e das cantigas que saiam como que esquentadas de sua garganta.

Nos primeiros dias ele dormia no sofá. Mas aos poucos foi migrando pra cama de meu pai. Essa mudança fez algo pra ela. Passou a limpar a casa todos os dias. O piso do quintal estava quase pronto. A reforma progredia. Toda tarde tinha barulho. E as balas enchiam meus bolsos. Ele passeava comigo e me dava comida até eu encher minha barriga.

No dia de natal ganhei meu primeiro carrinho. Pegou em minha mão com o carro em baixo e fazia barulho com a boca. Apertou minha garganta forte com a mão mandou eu fazer algum barulho. Não consegui fazer, mas gostei do carrinho. Obrigou minha mãe a me dar banho todos os dias. Ela dizia que não precisava, já que eu não me sujava. Comprou roupas novas e outras coisas. E passou, uma vez, todo o dia me ensinando a andar pela casa. Dizia que não precisava somente ficar no quarto. E disse que aos poucos eu poderia

até ir na rua sozinho. Se escondia pela casa e pedia pra eu procurá-lo.

Ele tinha a parte branca dos olhos amarela. Dizia que foi uma febre que teve. Num final de semana me comprou um óculos amarelo. E disse que era pra eu ver as coisas como ele. Agora eu ficava o tempo todo de óculos e carrinho. Minha mãe, quando ele não estava, passou a me dar comida sem me olhar daquele jeito. E a colher já andava rápido e não errava minha boca.

Quando eu ficava no quarto a parede já não me divertia. Eu tinha esquecido o nome dos buraco e eles não conversavam mais comigo. Passei a gostar do mundo amarelo. Não me importava mais com o barulho do quarto ou com as babas. Quando isso acontecia aprendi a andar pelo quintal ou olhar pra minhas mãos. No quintal, aprendi com suas ferramentas abrir estradinhas pelos cantos do gramado.

Quando faltava dois dias pra meu pai voltar ele foi embora. Antes de ir, me deu o resto das balas do pacote e falou que carrinho só anda direito se fizer barulho: “bem pouquinho no começo”. E falou também que eu podia continuar a usar os óculos amarelos. “tudo fica mais dourado”. Com a reforma a parede do meu quarto ficou sem buracos e sem manchas. Não podia criar historias. A casa estava toda bonita e reformada. E minha mãe estava entristecendo de novo. Via no rosto dela os buracos da parede. No dia que ele partiu falei minha primeira palavra. Não era uma palavra de verdade. Muito menos que isso. Quase uma tosse empurrada da barriga. E junto com ela meus olhos molharam.