REMINISCÊNCIAS DO AMANHÃ
“Este passado nosso ainda não se converte em autêntico passado, segue sendo um presente que não se decide a ser história.” (Leopoldo Zea)
REMINISCÊNCIAS DO AMANHÃ
(uma ficção surrealista)
Enquanto gastavam bilhões de dólares com energia nuclear bélica, a vida se arrastava no sul da América do Sul...
PROFECIA
Todos diziam que Pedro Silva era um louco. A cidade toda andou falando mal dele quando, alucinado, os olhos arregalados e os cabelos despenteados e ainda de pés descalços, profetizara sobre sua cidade e o fim próximo daquela comunidade retrógrada e infeliz.
“Nada ficará para contar a história do fim”, gritava Pedro Silva pelas ruas empoeiradas. “Nem mesmo as baratas...” e parava um pouco e repensavam suas frases como quem cometesse um erro. Depois continuava: “Talvez as baratas escapem, pois não restará nenhum pé para esmagar suas cabeças, aí elas povoarão estes horizontes”, e gesticulava e seu olhar se perdia num marasmo caótico.
ESTADO DE ESPÍRITO
Conforme Pedro Silva, todos na cidade, excluindo Silvia, eram tristes e infelizes.
Nada tinha dado certo naquelas vidas que sobreviviam enquanto a morte não chegava.
Os dias eram eternos para a população débil e melancólica.
A preguiça era o vício dos jovens e dos mais velhos.
REMINISCÊNCIAS
Num tempo distante, quando Pedro ainda era um menino, e seu avô lhe conduzia pela mão até um bar onde se embebedava ele (Pedro) ficava sentado num banco na frente, esperando o velho cansar de beber. Depois iam embora. O velho arrastava os chinelos e não dizia nada de interessante àquela criança calada. A única coisa interessante naquelas tardes era o contato com Silvia.
SILVIA
Menina. Magrinha. Pálida. Cabelos como algodão. Quando o sol quente do verão lhe queimava a pele, ficava vermelha.
CONTATO
Silvia descia as escadas de sua casa e invadia a rua. Chegava à frente do menino quieto e lhe acariciava o rosto. Depois o cabelo.
Pedro Silva se enxergava refletido nos olhos verdes da menina e sorria.
Silvia lhe puxava a orelha, beliscava suas bochechas, beliscava as pernas e ria enquanto o menino tentava se esquivar de suas mãos.
Silvia lhe fazia cócegas.
Ele ria.
Silvia lhe dava um beijo na testa e ia embora. Subia as escadas de sua casa e o vento e a velocidade de suas pernas finas balançavam sua saia de menina.
ACONTECIMENTO HISTÓRICO
A noite caia na cidade quando a velha avó arrastadora de chinelos saiu cambaleando com o neto seguro pela mão. A luz das estrelas começava a ser percebida na Terra quando chegou à notícia da Nova Ordem do País na cidade. O prefeito recebeu um documento das mãos de um oficial proveniente da Capital. O militar subordinava as autoridades locais ao seu jugo. Um pelotão de homens armados garantia o sucesso da
NOVA ORDEM
Todo o cidadão deve, para o engrandecimento da pátria, cultivar hábitos passivos, sem questionar as autoridades e a procedência das leis vigentes.
Aos cidadãos “comuns” está anulado o direito de organização política partidária ou sindical, a não ser que os mesmos estejam autorizados pelas Ligas Sociais Oficiais. Para a segurança da nação.
As Elites que por hora assumem o controle do país revogam todos os direitos civis e decretam a legalidade de uma Junta de Alto Comando Militar que atuará como Lei, Juiz, Pai. E para o progresso da nação a natureza e o meio-ambiente, a cultura e a educação, serão sacrificadas pela complexidade econômica que o momento exige.
Penalidades Letais aos que subvertem a Nova Ordem.
Pela Pátria. Pelo Povo. Pela Moral.
(Seguem doze assinaturas garantidas por doze mil vezes doze soldados armados).
DESEMPENHO DE UM HOLOCAUSTO
Toda Resistência contra a Nova Ordem foi perseguida, aprisionada, torturada e morta.
Os que lutaram pela democracia foram atirados dos aviões no mar e desapareceram.
Os tanques e as metralhadoras aniquilaram os camponeses e os homens-urbanos mais excitados de liberdade.
O dinheiro de Grandes Grupos Econômico prostitui o que sobrou dos destroços das roças e dos subúrbios.
Os vermes vieram à tona.
ENQUANTO ISSO...
O jovem Pedro Silva voltava para casa contente. Naquela noite tinha realizado o sonho que tantas vezes o tinha tirado da cama molhado de suor e com sexo rebentando de excitação. Como nos sonhos, Silvia tinha descido as escadas de sua casa e invadido a rua (agora escura). Acariciou-lhe o cabelo, o rosto e lhe beijou. Ele se enxergou refletindo nos olhos verdes de Silvia e pouco a pouco foi fechando os seus, deixando que a viagem do prazer lhe arrebatasse, no meio daquelas pernas brancas, apertando com força aquele corpo frágil e de seios proporcionais. Nunca mais queria sair daquela posição. A vida não tinha outro sentido senão o de estar dentro daquela mulher com traços tão de criança. Os dias de sua adolescência se resumiriam a uns livros, preguiça e noite em que via Silvia subir as escadas de sua casa e o vento e a velocidade de suas belas pernas balançaram sua saia de mulher.
MORTE
O velho arrastador de chinelos foi conduzido dentro de um caixão marrom, numa tarde ensolarada.
O cortejo fúnebre seguiu ruas empoeiradas e na frente do bar os antigos companheiros de bebedeira tiraram o chapéu e quebraram três garrafas na velha parede do velho prédio.
Uma velha mulher solitária jogou flores na velha terra de um velho cemitério fora da velha cidade.
A noite foi de melancolia.
Pedro Silva se sentiu ou preso àquela cidade até a manhã em que acordou e não encontrou o café posto na mesa. Foi ao quarto principal da casa e percebeu a alegria explícita no rosto branco, transparente e imóvel da ex triste avó. Tinha se libertado da melancolia, dos pesadelos e do destino de carregar um corpo velho e cansado e judiado.
O dia estava cinza e as moscas não deixaram ninguém dormir a sesta.
FANTASMAS
Uma casa enorme. Um dia fora habitado por dois casais e uma criança calada. Os velhos recebiam aposentadoria rural por seus dias de trabalho dedicados à produção primária daquela sociedade conservadora. Os pais (pais de Pedro) após a ilusão de um casamento, apostaram na concepção de uma criança tão calada que ao nascer não chorou nem mesmo com palmadas da negra parteira. Depois o jovem casal desapareceu da face da Terra. Pedro Silva nunca ficou sabendo como nem por que. Era muito pequeno e acostumou-se com os dois velhos que passeavam pela casa como dois fantasmas. Agora eram realmente fantasmas e ele podia ouvir a barulheira que faziam na cozinha e no quarto principal.
A solidão da infância, a precária escola, Silvia mulher, a preguiça, o mormaço de tantos janeiros, as noites frias de tantos invernos... tudo tinha passado correndo mas parecia uma eternidade cansativa de dias repetidos. A vida precisava mudar. Não, a vida não muda. Pedro precisava mudar de vida. Pedro precisava mudar a vida.
AS LÍNGUAS DA CIDADE
Silvia desceu as escadas de sua casa e invadiu a rua. Era de manhã. Bem cedo.
“Pedro era louco porque tinha vendido a enorme casa de avô”;
“Pedro era louco porque estava tirando da proteção dos pais a criança mulher Silvia (disposta a ver com seus próprios olhos o que se passava além das coxilhas que cercavam a velha cidade)”;
“Pedro, apesar de calado, era endiabrado, tinha parte com o demônio, e seus olhos vidrados refletiam isso”;
“E o mundo e os caminhos de Deus e da vida lhe sugariam o veneno que ele represara, e lhe trariam à realidade de sua existência”;
“Ou o mundo violento lhe mataria numa dessas noites, junto com seus sonhos de louco”;
Comentavam as línguas da cidade que ficava para trás.
DA VIAGEM DE TREM
Primeira classe: Uma classe médio-baixa em decadência. Velhos ociosos e obesos dormindo e roncando. Velhas rebocadas de batom barato e com bijuterias pelo corpo. Meninas idiotas e caretas.
Segunda classe: Proletariado ingênuo e juventude desnutrida, absorvidos pela estratégia empregada pelo inimigo imperialista: a cultura brega de massa cortada em sua essência de causa social.
Ninguém falava de política. Mau cheiro nos vagões. Um ambiente de pobreza terceiro mundana. Pessoas comendo pão seco bóiam fria, carne de galinha assada e com farinha. Crianças subnutridas e choronas. Garotas tentando súbitas paixões e atirando-se do trem. Um povo limitado e incapaz de usufruir da faculdade do pensamento lógico, do questionamento, do discernimento, da alternativa e da iniciativa. Um povo de pele morena sem brilho e branca sardenta. Uma mão de obra barata e explorada pelos fariseus contemporâneos.
AVENTURAS DO TERCEIRO MUNDO
1987: Pedro Silva, nesta data, tinha depositado num investimento que rendia conforme a inflação, a quantia de trezentos mil cruzados (venda da enorme casa e avô). No início do ano a inflação alcançou um patamar de quinze a vinte por cento ao mês, e o investimento chegava a vinte e dois por cento, resultando numa renda bruta de sessenta e seus mil a vinte e um mil cruzados ao mês. Resumindo: Pedro Silva, com seu cartão de crédito, usufruía de moradia digna e se alimentava bem todos os dias. Além de ônibus e lotações, também usava táxi.
A vida passava numa mescla de preguiça e excitação que varavam os dias e as noites do apartamento.
A cidade lá fora enfrentava seus problemas sociais e políticos.
Deus e o Diabo assistiam a tudo, assentados no trono do nada.
PAUSA HISTÓRICA
Um Congresso prostituído tinha elegido um Presidente morto. Um imortal assumira o Executivo. Uma tentativa de zerar a inflação tinha iludido o povo confuso e sem ideal. A inflação batia recorde. As urnas começavam a se arrepender. Um bloco conservador aprovava seus projetos numa “nova” constituição. Os militares assistiam a tudo, assentados no trono da merda.
VIAGEM AO MUNDO NOSSO
DE CADA DIA
O tédio dos meses que seguiram parecia querer matar Pedro Silva, ou ao menos enlouquecê-los. Somente Silvia com sua eterna expressão sorridente, lhe tirava da constante tristeza. Os carinhos daquela mulher irreverente. O amor louco feito no tapete. A insaciável excitação. O amor louco na cozinha. O amor no banheiro.
Silvia desceu pelo elevador e invadiu a rua movimentada. Pedro, ao seu lado, calado e observador. As belas mulheres coloridas que visitavam as lojas e vestiam as grifes da mídia, contrastavam com as putas. Os executivos que cruzavam contrastavam com os mendigos que dormiam nas calçadas e nas imediações do Mercado Público. Os estudantes das escolas privadas contrastavam com os pivetes que lustravam sapatos e executavam pequenos roubos. E tudo aquilo era uma merda. Linda e fedorenta. Brilhante e repugnante. Pedro Silva vomitava. Silvia lhe socorria e pegavam um táxi.
Para Pedro era inconcebível uma sociedade apresentar tantas diferenças sociais. Os políticos com suas retorcidas jamais solucionariam os problemas tão visíveis e urgentes. O caminho deveria ser outro: repleto de prática imediata e revolucionária em sua sistemática.
Aos olhos de Pedro desfilavam as imagens de grandes prédios de apartamentos de luxo e de enormes casas com jardins, contrastando com barracos de madeira construídos nas periferias das estradas e com famílias inteiras habitantes de viaduto. Pedro vomitava. Silvia limpava o banco do carro e pedia desculpas ao motorista.
OUTRA COISA
O país tinha a oitava economia do mundo e o mais baixo salário mínimo da América Latina.
A grande parte do capital da nação estava nas mãos de uma minoria insignificante, enquanto mais da metade da população se encontrava em pobreza absoluta.
Os grandes latifúndios possuíam a maior parte das terras plantáveis, enquanto os trabalhadores sem terras lutavam por uma reforma agrária real, enfrentando os entraves burocráticos e a morosidade da “justiça”.
Os corruptos do regime militarista estavam soltos pelas cidades, tratando de alimentar mais a fortuna adquirida ilicitamente.
Os banqueiros e os grandes empresários articulavam seus interesses junto aos deputados “representantes do povo”.
As greves de trabalhadores eram declaradas ilegais.
A bandeira verde e amarela tremulava.
PAUSA PARA UM ACONTECIMENTO EXTRAORDINÁRIO
Era um domingo chuvoso e na janela do barraco o conhecido negro Adão, vendedor de fruta na feira, sintonizava o dia de seu radinho de quartas pilhas médicas. Pegou um pedaço de lápis que tantas vezes usou para fazer o orçamento de suas misérias e começou a corrigir seu cartão de loteria esportiva. Já tinha jogado setecentas e dezoito vezes e feito no máximo dez pontos.
Os olhos do negro aos poucos começaram a se arregalar. Até o nono jogo tinha acertado: três colunas do meio, duas colunas um e quatro colunas dois. O jogo dez deu coluna um e negro Adão sorriu mais uma vez. No jogo onze o Palmeiras havia vencido o Guarani, em Campinas, 2X1, e negro Adão tinha acertado. O momento de corrigir o jogo doze e treze foi tão rápido que o negro quase não sentiu. Suas duas colunas d meio estavam certas e aquele momento estava gravado para sempre na sua vida. Nem um orgasmo era tão excitante como saber que seus dias de arroz com feijão acabavam. Correu para abraçar os filhos e ainda ouviu a voz do locutor: “A grana: dois milhões quatrocentos e quinze mil com vinte e três centavos. Tudinho já descontado o imposto de renda...”.
No outro dia negro Adão não foi trabalhar.
No outro dia a vizinhança viu a família se mudando. O barraco ficou desocupado até ser invadido por um batalhão de famintos que fugiam da chuva e anos depois morreriam ali mesmo, com um raio numa noite de tempestade.
CONGRESSO DOS HOMENS TRISTES
Eles foram saindo dos lixos e de todas as vilas da cidade. Sérios de mal-humor e armados. Eles tinham uma coisa em comum: ódio e revolta e achavam que os caminhos da sociedade só poderiam ser mudados mediante a força e a morte de determinados líderes conservadores. Era meia noite e o salão de baile do clube Perdidos da Noite estava tomado de homens mal-encarados e dispostos à morte que há muito vagava pelos confins da Terra.
Quando Hermeto Silva tomou seu lugar no centro da mesa. Os trabalhos começaram.
Há um ano havia iniciado os encontros entre um pequeno grupo e já estavam comemorando a data quando resolveram fazer um congresso que reunisse um número maior de adeptos do descontentamento social e prejudicado direta e indiretamente pelo capitalismo. Pedro Silva estava no canto do salão.
Hermeto Silva usou da palavra: “Vou ser claro e objetivo com os presentes, pois não temos tempo para conversas fiadas. Certamente a sociedade que agora se estrutura com a nova constituição tomará o caminho da inércia histórica, ou seja, uma democracia capitalista, com pobreza e discriminação social e má distribuição de renda do país. Isto já vivemos. Isto não serve para a maioria. E eu quero passar para vocês a proposta de uma discussão sobre uma nova forma de estrutura social. Um sistema onde todas as classes tivessem seus sindicatos participando de um Congresso nacional de Sindicatos e daí sairia uma constituição soberana, que determinasse um não centralismo executivo, mas um colegiado eleito democraticamente para organizar e administrar os setores básicos desta sociedade, como energia, educação, transporte, sistema financeiro e demais setores públicos. Acredito que seria um avanço histórico e nossas teorias deveriam nascer da ampla discussão dos sindicatos. Estaria assim lançada a semente para uma nova ordem social, nascida de baixo para cima, com participação do povo organizado”.
E para chegar a este estado, o que precisaria ser feito Hermeto? Perguntou um velho magro e calvo, encostado numa parede.
Eu particularmente, defendo a idéia de um Estado separado econômica e politicamente, apenas com vinculação cultural e comercial com resto do país; só assim, entendo que se poderia bem auto administrar. Mas para isso não bastam apenas conversas e negociações, pois, bem sabemos o interesse de grandes grupos econômicos jamais admitiria uma política neste sentido. A representação dos trabalhadores-homens que movem à nação e subestimados é – é mínima e infelizmente teríamos que empregar métodos mais enérgicos para conquistarmos pelo menos a liberdade de nos auto-governar, a liberdade de nos politizarmos, a liberdade de propostas nossas sendo discutidas por nós e par nós.
Alguns outros homens tristes usaram da palavra para apoiar Hermeto Silva.
Na mesma noite foi formada uma comissão para elaborar e articular junto às entidades de trabalhadores, estratégias para levar adiante um possível plano de sublevação.
Quatro da madrugada e os homens tristes voltavam para suas casas.
AGOSTO: MÊS DE CACHORRO LOUCO
Crise nos abastecimentos. Nos supermercados faltava tudo: até papel higiênico tinha sumido das prateleiras. Nos grandes centros urbanos muitas lojas comerciais tinham sido saqueadas e a polícia andava como louca na vigília. O poder aquisitivo do povo diminuía dia a dia. As greves eram uma constante. O presidente imortal ia para a televisão buscar apoio e os punks cuspiam nos vídeos.
No sul aconteceram quarenta assaltos a bancos privados no mês de agosto. O sinistro ministro da justiça tirou o chapéu e cagou pela boca em rede nacional: “A situação está ficando intolerável no sul”. Em nome de Deus eu peço paz, ordem e progresso. Seria lamentável ter que usar nossas forças armadas para acalmar a impaciência destes nossos compatriotas.
Os homens tristes se organizavam e se amavam.
CENA LIBIDINOSA (ou Mel na História)
Quando Pedro Silva chegou a casa, Silvia se encontrava deitada, em posição fetal, nua, meditando sobre as coisas da vida. Ele nunca tinha visto sua mulher tão séria. Mesmo assim se despiu e a envolveu com seus braços, lhe acariciando os mamilos.
Silvia se levantou e buscou um virdro com mel puro. Passou em todo corpo de Pedro e foi lambendo com sua língua ágil o peito lambuzado e de raros pelos. Sua língua aventurou-se pelas pernas até abocanhar o pênis ereto e melecado. Silvia colocou-se sobre o corpo de Pedro e começou a cavalgar enquanto ele prosseguia as carícias nos seios com uma mão: a outra esfregava as coxas brancas e firmes. Nem mesmo a baixa temperatura daquele fim de inverno abrandava o calor dos corpos suados que buscava naquele momento de excitação um prolongamento da felicidade de conceber ao mesmo tempo o nada e o tudo, magicamente, velozmente. Um instante fugaz que na tentativa de eternizar-se sucumbia num clímax que deixava Silvia com gosto de esperma na boca, e Pedro imóvel, num vazio, divagando. Ficavam alguns minutos naquela imobilidade terna.
Antes de dormir, Pedro reafirmou que jamais plantaria uma criança neste planeta.
MASSACRE ANTES DA PRIMAVERA
31 de agosto, segunda-feira, antes da meia-noite. Os membros da cúpula da Organização dos Homens Tristes se esquivavam da chuva forte que caía e enfrentavam num prédio, velho de esquina. Um por um foram chegando e tomando seus lugares na reunião que estava para iniciar. O mês de setembro ia ser decisivo em termos de contatos e de ações para aquele grupo revolucionário.
Dos treze integrantes da reunião prevista, doze já tinham tomado seus lugares junto à mesa.
Hermeto Silva começou: “Acho que o companheiro Emiliano não vem. Mora longe, a chuva está forte e eu proponho começarmos os trabalhos”.
Quando começaram a examinar a pauta, do encontro, ouviram as sete batidas da senha combinada para aquela ocasião. Pedro Silva levantou-se e foi abrir a porta.
Quatro homens, vestidos de pretos com capuzes, invadiram o recinto com suas metralhadoras. Foram atirando em direção à mesa e as rajadas perfuraram os homens tristes e surpresos e agônicos.
Pedro Silva ainda tentou fugir por uma saída dos fundos, mas caiu encravado de balas que lhe atingiram as costas.
Um dos assassinos pegou um galão de querosene e derramou pela casa e sobre os corpos.
Quando saíram, num carro preto, o fogo começou a queimar a casa e o que nela se encontrava. Nem mesmo uma forte chuva apagou labaredas impetuosas que se fortaleciam com o vento.
O sangue de Hermeto Silva, que morreu debruçado sobre a pauta da reunião, pingou da mesa e foi misturar-se ao de Pedro Silva, caído o piso molhado.
IMPRENSA
“Violência e fogo no subúrbio. Doze homens, mortos a tiros e carbonizados, é o resultado de uma noite de muita chuva e vento, que se mesclaram com o fogo de um prédio velho” >.
“A polícia acredita que tenha sido ajuste de contas entre quadrilhas que manipulam o tráfico de drogas no Estado”.
As vítimas ainda não foram identificadas.
“O fogo gerou pânico na vila”.
DIÁSPORA
Nunca mais os homens tristes se reuniram.
Emiliano não foi visto pelos seus colegas.
Somente as viúvas com seus 36 filhos procuraram informações sobre o massacre do dia 31 de agosto.
Os contatos da célula em organização desapareceram.
As nuvens pesadas migraram para o norte.
METAFÍSICA
Realmente os homens são como vermes que se proliferam na terra. São bilhões de pessoas que habitam as cidades, interligados por sistemas modernos de comunicação e agem como maquininhas do dia a dia: com suas complexidades, suas neuroses, seus medos, suas paixões, suas crenças... num vazio absurdo, cercados e sem saída num universo infinito e escuro.
Após uma ejaculação, os gametas travam uma corrida de vida ou morte com seus irmãos, em busca de um óvulo que fecundará e tomará forma de mais um humano. E sem ter pedido para nascer descobre um mundo onde a violência tem varado o tempo e as culturas com absoluto poder decisivo, e herda um meio ambiente desgastado pela ação dos séculos e alterado pela sina exploradora dos homens. Uma criança que cresce e assimila a vida. Um ser desenvolve a necessidade de sobrevivência. Uma expressividade que concebe ou não os mistérios do espírito. Numa corrida cíclica em direção à morte, ao nada, à verdade.
Enquanto isso, em pleno século XX, quando a civilização revisou centenas de filosofias, criou sistemas tecnológicos para uma mais ampla edificação social e alcançou argumentos científicos que explicam tudo, homens ainda se trucidam pelo poder, morrem e matam por posições e dinheiro, como se toda autoridade não fosse efêmera e condenada a cair no esquecimento e no ódio.
Chega um momento que a vida parece não valer sequer uma palavra. Chega um instante que todas as nossas ansiedades e desejos parecem evaporar numa nuvem de interrogação.
THE END
Silvia desceu as escadas de sua casa e invadiu a rua. Uma nova vida tinha que ser recomeçada. Urgentemente.