NO NHUMIRIM, PERTO DA LAGOA

Na noite anterior, tudo parecia comum e de sempre. Tão logo a lua se colocou crescente, equilibrada atrás e no alto do Majestoso, percebi as mudanças.

Primeiro minha mãe saiu para o terreiro de avental sem bicos de crochê, e varreu a terra pisada de lá pra cá e de cá pra lá umas mil vezes. Depois decidiu: “amanhã não levo o almoço de mutirão pros homens na roça”. Isso foi mudança grande mesmo não parecendo na hora, tem coisas que a gente só vê o tamanho quando depois de nós. Já as pequenas mudanças eu percebi duma vez

Lá em cima, a lua calou tudo - minha mãe, os bichos e a mata. Calada, ela resmungou: “dia de crescente a lagoa enche”. Dentro desse silêncio que ainda não tinha acontecido por aqui, um silêncio perigoso, a cadeia de eventos do dia seguinte apareceu para mim desenhada no céu

Olha bem, naquele tempo eu não sabia que estrelas ajuntadas se chamava constelação, nem sabia que o tudo de estrelas é mapa seguro desde quando o homem foi inventado. Eu não sei mais, mas naquela noite anterior eu compreendi. Compreendi no revelado o desenho de um menino andando de costas, se afastando para trás com as mãos esticadas pra um desejo sumido. Andava de modo distraído sem sair do lugar porque andava para trás, o menino. Era andar de quem volta, o menino voltando devagar crescia virando homem. De tão bom que era ver, eu dormi no capacho que ficava estendido debaixo da eira, e sonhei

Sonhei isso que tinha visto no céu, do mesmo jeito com a diferença de ser cada estrela uma pessoa e o céu inteiro a lagoa do Nhumirim. Tudo crescia andando para trás - a mata engolia o terreiro, a lagoa engolia o Nhumirim. E dos homens que trabalhavam restava apenas a mão de um. Tudo estranho como convém aos sonhos e aos olhos de uma criança, até o dia seguinte

Logo o sol nasceu e o dia apertou tudo dentro duma ideia: “eu mesmo levo o almoço dos homens”. E fui, abençoado por minha mãe que acrescentou ao de costume: “passe longe do bambuzal, que é mais perigoso que silêncio de cobra”. Entendi isso, e caminhei para fora do terreiro, para dentro da mata e logo achei o caminho da lavoura pequena onde os homens destroçavam a terra para semear o milho na próxima lua. Mas antes, a lagoa

A lagoa era pequena, sempre cercada pelo bambuzal lindo de ver. Juntas, nas grimpas das alturas e sobre o espelho, o bambuzal deixava quase toda a luz de fora. A lagoa parecia uma clareira apenas iluminada por uma réstia na hora do almoço. Tão rasa, a lagoa. Dava pra ver os peixes que eram girinos e lebistes coloridos. E transparente como um véu, o fundo, por causa das pedras brancas que de vez em quando refletiam a luz pra fora d’água, arcos-íris tingiam os bambus. Tudo encantado, mas eu carregava na cabeça a panela bem grande embrulhada em panos para não esfriar a comida. Na cintura ia uma cabaça de água do poço porque a água da lagoa não era boa de beber. Estava nisso, entre querer ver de perto de novo e o medo do silêncio das cobras quando

Do longe da roça veio o grito que passou pelos primeiros homens e chegou bem fraco: “tromba d’água!”. Mas eu já tinha decidido que ia levar para casa uns lebistes e já estava com os pés na pinguela equilibrando o de comer dos homens dentro da panela, agachado com uma das mãos cortando a flor da água. Ouvi de novo e mais forte, “tromba d’água!”

Num instante a água foi ficando turva, nada de peixe, nada de nada colorido. A clareira não era mais, o céu escureceu e engoliu o escuro bonito de dentro do bambuzal: “tromba d’água!”. De novo o grito, e só depois de ouvir agora forte bem perto, é que atinei o aviso. Dei conta do perigo e aprumei o corpo em cima da pinguela. Num relance de vista, avistei de um lado os homens correndo para atravessar o seco depois da lagoa e, do outro lado, o ermo duma onda arrastando tudo no leito do ribeirão. A lagoa no meio, eu no meio da lagoa sobre a pinguela. Tudo no escuro de um relance, mas a comida dos homens

O de comer é sagrado, não se joga fora. Por isso meu pai plantava milho onde os torrões prendiam as raízes de pau sem uso da mata. Primeiro meu pai ajuntava homens que tinham a mesma fome, depois arrancavam juntos os pés-de-pau, era assim que chamavam o que não servia para lenha. O que servia de lenha ia para a casa dos fundos e virava carvão, o resto ficava na terra mesmo, que era para desmanchar, virar terra e receber o milho. Eu sabia de tudo sem roçar nada, não deixavam porque eu devia seguir outro rumo

Para mim o destino reservado era a escola, quando fosse hora. Pra mim, o destino era levar a comida dos homens no dia em que a lua deu de crescer mais perto do Nhumirim. Eu sabia que o caminho da escola era o da estrada longe da lagoa e dos lebistes, e não queria nunca deixar nada. E depois que veio o asfalto, soube que ia ser no ano que vem. Meu coração, porque eu era um coração de menino, doía de pensar a vida longe do terreiro e da mãe com a vassoura separando a rala miséria dos grãos de café da palha das cascas secas misturadas. Sentia doer gostoso, não queria deixar nada e juntava tudo de olhar, tudo o que podia precisar se um dia fosse. E de olhar pra tudo como se fosse um mapa eu me perdia

Sobre a pinguela, já com as águas sujas dando na canela, atinei paro o que vinha. Restei sozinho, os homens a salvo do lado mais alto da várzea e o meu pai

Tudo foi num estalo, a panela levou a comida na corredeira, a cabaça boiava endoidecida já longe e a lagoa cresceu. Percebi aquilo como último, ia guardar. Percebi também que guardar era bobagem - tudo ficava arrastado. Então pensei: “antes tivesse ido pra escola” e fechei os olhos para morrer com tudo que tinha guardado até então. Mas o meu destino era não morrer naquele dia

Meu pai surgiu de repente, perto de mim como peixe grande fora d’água. E quando eu já não conseguia mais segurar em nada, a mão forte e calejada dele segurou a minha. Dei de banda, engoli água suja. Minhas pernas já eram nadadeiras de um peixe que eu ia ser depois mais tarde. Quando não, fui tirado num solavanco para ver o meu pai cair em vez de mim no meu lugar, dentro do ribeirão

Eu não sabia por que guardava cada coisa que via, ouvia ou cheirava. O pão no forno de barro antes varrido com piaçava e alecrim, a colônia de barba que ele usava ou o amargo do café moído. Eu soube dizer só mais tarde o quanto dói saber que nada se perde. E toda vez que vem a agonia de rever meu pai tomar o meu lugar na lagoa, perto do Nhumirim, cresce dentro de mim o homem que escreve e conta coisas misturadas. Como se tudo fosse palha e grão. Esse homem que conta tudo conforme, e no lugar. O que não é destino é resto. E resto é história.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 27/10/2017
Reeditado em 22/12/2018
Código do texto: T6155009
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