Homem Judeu: leitura em "Jó, Romance de um Homem Simples" - Joseph Roth
Uma leitura no livro "Jó: Romance de um Homem Simples", romance escrito por Joseph Roth
“As mulheres não servem de nada”, dizia certo judeu, na página oitenta e seis de sua biografia. A este judeu, sim, a este, pergunto: as cãs nada lhe ensinaram? Seu livro, em que a Criação é declarada, nada lhe ensinou? A idade, avança!, nada lhe ensinou? Os cabelos brancos, grisalhos tantos!, não lhe ensinaram nada? Seu chapéu suas repetições suas gesticulações seus mantras seus mantras ... seus mantras, algo lhe ensinaram?
Sim, a este homem, que diz amar mulher, e ao outro, que está ao lado do judeu, gordo e desejoso de seios e amante das éguas, que pensa amar mas não ama mulher, pergunto-lhes: vocês nada apreenderam? Mesmo da natureza! Mesmo dos sapos! Nada...?
Mas, realmente, não teria como verdadeiramente amá-la, homem judeu.
Digo, como homem, que imagino sua dor, homem judeu.
A dor de, sem nada saber ou perceber, ouvir e escutar a própria filha (o próprio fruto de sua carne!, sua flecha em carne e osso!, a menina de seus olhos!) a carne dar a um soldado, a um garoto, a outro soldado, a um alemão alegre, a dois russos frios, às bestas em forma de rapazes, aos campos infestados, à doença venérea, à coxa debaixo da mesa!, ao incesto ... eu imagino sua dor, homem judeu. Imagino-a rasgando sua carne e, como que buscando por mais carne a rasgar, invadindo seu peito em angústia, trazendo-lhe memórias e mais memórias, imaginações e mais imaginações, terríveis quanto possível!, dando-lhe vontade una e uníssona: cerrados os punhos, gritar (um grito frio, um grito bestial, um grunhido de porco!).
A dor de ouvir a própria esposa dizer: inútil, insignificante. A dor lacerante de receber cuspe de desprezo, cuspe este que consiste em sua única medalha por ela recebida: vejam, ele foi medalhado com desdém, condecorado com catarro! Sua própria carne desejaria, por assim dizer, retirar-se de si, em desprezo, em desdém. Desdém.
Suas mulheres, nada suas. Ambas, em desprezo, diziam-lhe: ah, judeu, vá se curar dessa sua mediocridade, dessa doença de ser você mesmo (“seja outro, seja outro!” elas diriam, não estivessem ocupadas desprezando-o com a boca e odiando-o com o coração).
Mas não teria como você amar a sua própria carne, pois você se voltava contra sua própria vida. Não haveria maneira de amar o fruto de duas carnes unidas; não...
Homem judeu, o justo! que canta o canto dos justos, você é como todo homem natural de mulher. Ah, homem judeu, como homem e não como juiz digo.
Não mais desejou sua própria carne, desprezando-a. Disse com firmeza: estamos juntos pois o ser humano melhor é que não fique só, e não por ela como mulher.
Eu talvez imagine sua dor. Suas mulheres, e nada suas, desprezaram-no com hálito traidor. O desdém, a carne por você gerada dada aos cães, e suas cãs nada lhe ensinando... ah, homem judeu, muito antes de você pisar, muito antes de intentar queimar, muito antes de dizer “não!, não!, não!, não mais homem-besta, mas agora besta completa!”, muito antes de marchar a marcha sem volta, você já estava... acabado: morto. Muito antes você já estava pior do que ao final. Você, por assim dizer, retrocedeu do abismo algumas polegadas; seu abismo era ainda pior: o enterrar dos olhos do fariseu.
Ah, homem judeu, que por tradição irrepreensível e sem mácula era, você não tinha como amar mulher por uma razão.
Mesmo que dissesse amar mulher, ainda que amasse a carne, ainda que não traísse, ainda que para nenhuma outra olhasse, por mais que respeitasse, mesmo não desonrando, mesmo não chegando tarde, ainda que elogiasse, por mais que dormisse junto, ainda que sustentasse, ainda que da carne gozasse, mesmo que muitos versículos recitasse (ouçam!, como mil galopes!, como o marchar de uma cavalaria!, como uma orquestra!, uma sinfonia de virtudes irrepreensíveis!), você não poderia amar mulher.
(A dor desta vida, mesmo terrível, não angaria méritos, não ajunta merecimentos, nada merece!, não tem êxito em barganhar.)
Você, homem judeu, e falo como homem e não como juiz, você foi como todo homem nascido de mulher. Você, Mendel Singer, não amou mulher, pois amou a Deus.
E não digo que não amou a Deus por ter blasfemado: mas porque não o amou como Ele comanda. Você, Mendel Singer, não amou a Deus porque confiou em si mesmo, porque confiou em seu próprio coração, porque confiou em suas tradições, porque confiou nas supertições dos pagãos, porque pensou ser Deus como é o homem, porque pulou ritos que Ele não ordenou pular, comeu pães que Ele não ordenou comer, bebeu vinho que Ele não ordenou beber, amarrou tranças e chacoalhou o corpo, coisas que Ele não ordenou fazer. Você honrou, você orou, você amou, você odiou, você educou (o professor dos fariseus, o mestre das tradições, o erudito da condenação!), você obedeceu... você desonrou, você emudeceu, você odiou, você amou, você escandalizou (o justo, o irrepreensível, o Mendel Singer!). Você, por fim, blasfemou. Você, homem judeu, mesmo com grande dor, mesmo com grande terror, terrível sofrimento, passou por esta terra, terra dos viventes, e não cumpriu o que todo homem deve cumprir: arrepender-se e crer; você, Mendel Singer, como todo homem e mulher, naturalmente não poderia amar mulher, pois não amava a Deus... pois tinha por pai o diabo. Você, Mendel Singer, judeu dos judeus, homem simplesmente natural, terrivelmente simples, não teve o coração de pedra trocado por de carne. Você, homem judeu, Singer (cantor das honrarias inúteis!), foi como todo homem não regenerado: não se pôs aos pés de Cristo, O Salvador.
Seu pai, homemzíssimo judeu, foi o diabo, e você acreditou em suas mentiras.