Afrânio virou arte.
Afrânio , 50 anos de porte atlético, praticava esporte todos os dias. Um jovem senhor de mente aberta, era proprietário do comércio de padaria, casado com Beatriz, artista plástica, esta vivia no anonimato, suas obras sem reconhecimento pela crítica, quadros e esculturas sem sentido. Taxada como algo comum, uma arte básica.
Em um lindo dia, um desastre aconteceu, e Afrânio , em plena atividade física, enfartou, morreu.
Sua bela esposa resolveu naquele momento triste fazer uma homenagem ao dedicado marido.
Seu velório não seria convencional, seu corpo deveria ser tradado e exposto, em forma de arte, para todos reconhecerem o valor que ele tinha, o quanto ajudou pessoas queridas e também um reconhecimento como salvador das famílias de tantos funcionários.
“Uma exposição de arte seria a forma ideal! ”, pensou a dedicada esposa. Logo tratou dos trâmites para colocar em prática seu audacioso plano.
Levou o corpo a funerária e disse o que queria. Os funcionários, espantados, não sabiam o que fazer, agir daquela maneira seria legal? Na dúvida, decidiram fazer o solicitado pela doce viúva, pois tinham medo de perder o emprego por negar a solicitação.
Limpara o corpo e a melancólica esposa solicitou que retirassem suas vísceras para não exalar o cheiro do finado defunto que já estava exalando odor fétido no ambiente.
Finalmente a exposição ficou pronta. No meio do salão, junto a suas obras, a artista expôs o corpo nu de seu marido, pregado à uma cruz, com cordas envolvendo seus braços e pernas, para permanecer ereto, e em sua cabeça, uma coroa de espinhos.
Logo a polêmica começou. Tablóides noticiaram o acontecido: "Como é possível dizer que é arte tamanha aberração?”. O escândalo e repercussão fizeram com que toda população da pequena cidade de Rosácea se reunisse em frente ao modesto Museu de Arte Moderna.Indignação, revolta, cartazes de repúdio e também algumas pessoas manifestando apoio a artista.
Tamanha dedicação e busca de reconhecimento a seu marido e sua obra, não valeu de nada. O povo não entendia que aquele era apenas arte e uma forma singela de homenagem.
Porém a criadora não se deu por vencida. Decidiu encerrar aquela mostra e iniciar outra. “Desta vez a crítica ira aclamar”.
A nova exposição será dedicada a terra, mostrando a fertilidade, a origem e o fim, inclusive de seu finado marido.
Em frente ao museu, caminhões de terras iam se aglomerando e despejando, para serem carregadas, pelos funcionários, para parte interna. A terra cobria todo o chão, algumas salas com um belo tapete de grama, outras a lama e ainda algumas com terra apenas. Árvores por todo lado, flores em vasos pendurados, resumindo, tudo transformado em um belo jardim.
Logo na entrada, visitantes se deparavam com árvores frutíferas, passando por lindas hortas, um enorme jardim suspenso e no centro do jardim, em uma cama confeccionada com folhas secas, jazia seu eterno e adorado esposo.
O corpo entrelaçado por trepadeiras, desta vez, usou uma coroa de flores em torno de sua cabeça e preencheu todos os orifícios com leguminosas. A cenoura deu lugar de destaque. Isso mesmo caro leitor, exatamente onde sua imaginação supôs.
Mais uma vez a mídia, criticava e grande parte dos visitantes, foram cruéis e implacáveis com a autora das obras.
Agora com notoriedade nacional. Noticiários por todo país comentaram sobre sua “arte macabra” outros a chamaram de “sinistra”, dependendo do ponto de vista. Jornais e revistas de todo país querendo saber mais sobre a artista e sua “obra funesta”. A repercussão negativa, fez a tornar conhecida, não pelo valor que dedicou a seu trabalho, mas pelo toque pavoroso que resultou a exposição do corpo de seu finado companheiro.
Chorou. Como grande parte das pessoas. Não reconhecia o que a ela estava propondo? Suas obras e exposições foram criadas com e pelo amor. Amor a arte, amor ao homem que por muito conviveu, amor ao corpo a natureza, amor a humanidade.
Não, não poderia ficar assim. A memória de seu marido seria honrada. Egoísmo seria guardar tudo de bom que ele proporcionou e não dividir com outros.
Naquela noite, sonhos estranhos invadiram seu sono. Índios de várias etnias se colocaram a dançar em sua volta, cânticos ecoavam por toda sua mente.
Ao acordar, uma idéia surgia. “Minha próxima exibição será sobre tribos indígenas brasileiras, vou contar a sua história e fazer com que todos experimentem a presença de meu estimado marido.
Em pouco tempo a exposição já estava pronta. Contava a história das populações genuinamente brasileiras.
Ao abrir o pavilhão, confusão generalizada, um alvoroço enorme para entrar, todos queriam ver a próxima obra polêmica que a artista fez de seu marido. Mas, frustrando a todos, seu corpo não estava lá.
Viu-se os Guaranis, algumas famílias destes composta por várias esposas. Os Ticunas, expondo suas caça e pesca, Guajajaras e sua rica agricultura. Os Ianomâmis, observando o homem branco com um certo ar de desconfiança. O Xavantis, com seus corpos pintados e por fim, os Tupinambás, que estavam no fim da exposição. Eles faziam um ritual e ao final, ofereciam um suculento churrasco aos visitantes, os que falavam o português diziam que a ingestão de tal carne oferecida neste ritual, tinha a intenção de proliferar a coragem, inteligência, forças e habilidades a todos que ali visitavam.
Sim, os Tupinambás é uma das tribos que praticava o canibalismo no Brasil redescoberto. Acreditavam que devorando o outro, seu conhecimento estaria salvo e assim poderia perpetuar.
Agora sim, o falecido marido lembrado para sempre. Seu conhecimento, bondade e força se espalhou. Sua presença todos poderiam sentir e saborear, digerindo sua lembrança e a arte se sobrepôs as críticas.
A sutileza de sua obra foi comentada, também o fato do não aparecimento do corpo. Seu marido foi enterrado em um caixão lacrado, desta vez não exposto, nem poderia, um enterro modesto e simples, acompanhado sempre de perto pelos funcionários da funerária.
Casou-se novamente, com um homem que considera bom, porém de idade um pouco mais avançada. Vive ainda como artista plástica a beira do esquecimento, porém não perde a esperança de um breve estrelato, seu atual marido não anda muito bem de saúde.
Até onde a atual “arte” pode nos levar?