Deixei o Cebreiro assim que o denso nevoeiro se dissipou. Tudo estava límpido e claro, com um céu de azul intenso. A despeito de tudo isso eu não conseguia enxergar absolutamente nada olhando para o imenso vale logo abaixo – apenas um espesso e contínuo tapete branco. Acabei entendendo que eu estava acima das nuvens. Era uma visão fantástica, a mesma que temos quando estamos no Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, e as nuvens mais altas se dissipam, enquanto aquelas que estão abaixo de nós ainda se mantém por algum tempo impossibilitando que vejamos a cidade.
Na prática, a partir do Cebreiro não há mais subidas significativas - só descidas. A gente sai de uma altitude de 1330 metros e baixa até os 260 metros de Santiago de Compostela, quase sem oscilações.
Fui descendo até Linares para logo à frente subir suavemente até Hospital de La Condesa. Dois quilômetros depois cheguei ao Alto do Poio. Dirigi-me ao Albergue Del Puerto, bastante simples. Na verdade era apenas um pequeno bar com algumas mesas para refeições localizado bem na beira de uma estradinha quase sem tráfego, a LU-633.
Os quartos ficavam no andar superior com somente18 leitos. Procurei pela mochila que havia despachado de Vega de Valcarce e uma senhora me levou até uma pequena sala nos fundos apontando para várias delas que estavam no chão, uma ao lado da outra.
Peguei a minha sem que ninguém me exigisse qualquer tipo de comprovação. A palavra das pessoas por aqui ainda é suficiente.
Resolvi hospedar-me ali mesmo. Falei para a gentil senhora que me atendera, que havia caído na subida do Cebreiro e ela gentilmente mudou-me para um quarto menor, onde não havia mais ninguém.
- Aqui ficarás melhor. Não te preocupes, vou te cobrar o mesmo preço.
Agradeci tomei meu banho e desci para jantar, pois não havia mais nada pra se fazer naquele lugar.
Enquanto comia, notei que as pessoas falavam uma língua diferente, uma mistura de espanhol e português. Era o Galego - afinal eu estava na Galícia e nada mais natural que isso.
Tive um pouco de dificuldade para dormir, pois o bar lá embaixo ficou lotado e à noite os galegos conversavam muito alto enquanto jogavam cartas. Uma verdadeira algazarra.
Na manhã seguinte tomei café ali mesmo e retomei o caminho, passando ao lado de lindas fazendas.
O cheiro de esterco estava em toda parte. Comecei a encontrar aldeões tocando o gado pela trilha e quando isso acontecia tinha que me encostar a alguma cerca ou árvore para permitir a passagem dos rebanhos. Se não tomasse cuidado iria acabar atolando o pé num daqueles montes de cocô de vaca que ficavam pelo caminho.
Na localidade de Biduedo, encontrei bem na beirada da estradinha uma ermida em pedra dedicada a San Pedro, a menor de todo o Caminho. Dizem que dentro dela há uma espécie de passagem para outra dimensão. Tentei entrar, mas estava fechada. Através das grades do postigo de sua espessa porta de madeira, me foi possível ver apenas um singelo altar com algumas imagens numa espécie de oratório.
Continuei caminhando por mais sete quilômetros, passando por Filloval e As Pasantes, chegando a Triacastela, uma cidadezinha com apenas 680 habitantes, de onde pretendia ligar para casa. Chovia muito nesse momento.
Era dia 29 de maio - eu e minha esposa estávamos completando 44 anos de casados. Somando os anos de namoro e noivado dava mais do que isso – quase meio século. Troquei alguns euros em moedas, pois o telefone do restaurante não aceitava outra coisa.
- Tens que colocar várias moedas antes para não cair a ligação, avisou-me o proprietário.
Minha mulher atendeu do outro lado. No Brasil ainda era cedo e ela estava dormindo. Assim que ouvi sua voz comecei a chorar. Dei-nos mutuamente os parabéns pelo transcurso dessa importante data e falei-lhe de minhas descobertas pelo Caminho, de minhas angústias e de minhas alegrias. As moedas de 1 euro caíam freneticamente, uma após a outra. Terminei dizendo que estava sentindo muito a sua falta e que no próximo ano certamente faríamos o mesmo Caminho juntos.
Encerrada a ligação, tomei um canecão de chope nesse mesmo lugar e retomei a marcha debaixo de uma pesada chuva. Afinal, eu estava na Galícia, a Comunidade Autônoma com o maior índice pluviométrico de toda a Espanha.
Passei por San Cristobo do Real e Renche, todos simples, mas lindos e bucólicos lugarejos onde predominavam as atividades campestres. A chuva continuava a castigar-me impiedosamente até que, por fim, avistei a cidade de Samos com seu lindo Monastério que oferece pousada aos peregrinos. Como estava lotado, acabei tendo que hospedar-me num albergue particular que fica bem na frente dele.
Na manhã seguinte o tempo amanheceu muito bom e assim resolvi caminhar um pouco mais devagar para poder apreciar melhor toda a beleza daquela região.
Muito embora esse trecho acompanhasse o mesmo trajeto da “carretera” Lu-633, havia muito que se ver. Fiz apenas 12 quilômetros de Samos a Sárria, passando por Teigun e Aian.
Já em Sárria, minha preocupação era apenas a de encontrar uma boa “pulperia”, onde pretendia comer o famoso prato de polvo preparado naquela cidade.
No Albergue, recomendaram-me a Pulperia Luís. Fui o primeiro cliente do dia a ser atendido, pois os lindos caldeirões de cobre usados para preparar o polvo sequer haviam sido colocados no fogo.
- Não há pressa, disse tranquilizando logo o pessoal da cozinha. Basta que me tragam uma garrafa de vinho, pão e azeite e esqueçam que eu estou aqui.
A turma riu bastante e acabaram por me deixar bem à vontade.
Enquanto ia tomando meu vinho e me deliciando com as fatias daquele apreciado pão molhadas no azeite verde e espesso da região, fui colocando a minha correspondência em dia. De vez em quando me levantava e ia ver como estava indo o preparo do polvo, dando uma cheirada na fumaça que saía do caldeirão. O pessoal do restaurante achava engraçado.
- Por que vocês brasileiros são assim sempre tão divertidos? – perguntou-me a jovem atendente.
- Acho que a gente tem que ser assim pra não chorar, respondi.
Ela achou graça e finalizou dizendo que o vinho era por conta da casa. Gostei muito!!
Notei que havia uma bruxa de pano pregada na parede. Não era a primeira vez que eu via aquilo na Galícia. Parecia uma espécie de amuleto de aceitação geral, algo muito estranho justamente numa região que fora a mais castigada pela inquisição espanhola.
Satisfeito após ter comido (e repetido) o tal polvo, fui visitar a cidade que tem pouco mais de 13.000 habitantes.
Despertei cedo na manhã seguinte e lá fui eu pra caminhada do dia. Cruzei lindas vilas e bosques ouvindo os pássaros cantando nas árvores, quase sempre margeando algum riacho. A Galícia é também a Comunidade Autônoma mais arborizada e mais úmida da Espanha.
Passei por Barbadelo, Rente, Peruscallo, Belante, A Brea, Ferreiros, as Rozas, Vilachá e finalmente avistei Portomarín, a meta dessa minha jornada depois de ter caminhado exatos 22 quilômetros.
Na prática, a partir do Cebreiro não há mais subidas significativas - só descidas. A gente sai de uma altitude de 1330 metros e baixa até os 260 metros de Santiago de Compostela, quase sem oscilações.
Fui descendo até Linares para logo à frente subir suavemente até Hospital de La Condesa. Dois quilômetros depois cheguei ao Alto do Poio. Dirigi-me ao Albergue Del Puerto, bastante simples. Na verdade era apenas um pequeno bar com algumas mesas para refeições localizado bem na beira de uma estradinha quase sem tráfego, a LU-633.
Os quartos ficavam no andar superior com somente18 leitos. Procurei pela mochila que havia despachado de Vega de Valcarce e uma senhora me levou até uma pequena sala nos fundos apontando para várias delas que estavam no chão, uma ao lado da outra.
Peguei a minha sem que ninguém me exigisse qualquer tipo de comprovação. A palavra das pessoas por aqui ainda é suficiente.
Resolvi hospedar-me ali mesmo. Falei para a gentil senhora que me atendera, que havia caído na subida do Cebreiro e ela gentilmente mudou-me para um quarto menor, onde não havia mais ninguém.
- Aqui ficarás melhor. Não te preocupes, vou te cobrar o mesmo preço.
Agradeci tomei meu banho e desci para jantar, pois não havia mais nada pra se fazer naquele lugar.
Enquanto comia, notei que as pessoas falavam uma língua diferente, uma mistura de espanhol e português. Era o Galego - afinal eu estava na Galícia e nada mais natural que isso.
Tive um pouco de dificuldade para dormir, pois o bar lá embaixo ficou lotado e à noite os galegos conversavam muito alto enquanto jogavam cartas. Uma verdadeira algazarra.
Na manhã seguinte tomei café ali mesmo e retomei o caminho, passando ao lado de lindas fazendas.
O cheiro de esterco estava em toda parte. Comecei a encontrar aldeões tocando o gado pela trilha e quando isso acontecia tinha que me encostar a alguma cerca ou árvore para permitir a passagem dos rebanhos. Se não tomasse cuidado iria acabar atolando o pé num daqueles montes de cocô de vaca que ficavam pelo caminho.
Na localidade de Biduedo, encontrei bem na beirada da estradinha uma ermida em pedra dedicada a San Pedro, a menor de todo o Caminho. Dizem que dentro dela há uma espécie de passagem para outra dimensão. Tentei entrar, mas estava fechada. Através das grades do postigo de sua espessa porta de madeira, me foi possível ver apenas um singelo altar com algumas imagens numa espécie de oratório.
Continuei caminhando por mais sete quilômetros, passando por Filloval e As Pasantes, chegando a Triacastela, uma cidadezinha com apenas 680 habitantes, de onde pretendia ligar para casa. Chovia muito nesse momento.
Era dia 29 de maio - eu e minha esposa estávamos completando 44 anos de casados. Somando os anos de namoro e noivado dava mais do que isso – quase meio século. Troquei alguns euros em moedas, pois o telefone do restaurante não aceitava outra coisa.
- Tens que colocar várias moedas antes para não cair a ligação, avisou-me o proprietário.
Minha mulher atendeu do outro lado. No Brasil ainda era cedo e ela estava dormindo. Assim que ouvi sua voz comecei a chorar. Dei-nos mutuamente os parabéns pelo transcurso dessa importante data e falei-lhe de minhas descobertas pelo Caminho, de minhas angústias e de minhas alegrias. As moedas de 1 euro caíam freneticamente, uma após a outra. Terminei dizendo que estava sentindo muito a sua falta e que no próximo ano certamente faríamos o mesmo Caminho juntos.
Encerrada a ligação, tomei um canecão de chope nesse mesmo lugar e retomei a marcha debaixo de uma pesada chuva. Afinal, eu estava na Galícia, a Comunidade Autônoma com o maior índice pluviométrico de toda a Espanha.
Passei por San Cristobo do Real e Renche, todos simples, mas lindos e bucólicos lugarejos onde predominavam as atividades campestres. A chuva continuava a castigar-me impiedosamente até que, por fim, avistei a cidade de Samos com seu lindo Monastério que oferece pousada aos peregrinos. Como estava lotado, acabei tendo que hospedar-me num albergue particular que fica bem na frente dele.
Na manhã seguinte o tempo amanheceu muito bom e assim resolvi caminhar um pouco mais devagar para poder apreciar melhor toda a beleza daquela região.
Muito embora esse trecho acompanhasse o mesmo trajeto da “carretera” Lu-633, havia muito que se ver. Fiz apenas 12 quilômetros de Samos a Sárria, passando por Teigun e Aian.
Já em Sárria, minha preocupação era apenas a de encontrar uma boa “pulperia”, onde pretendia comer o famoso prato de polvo preparado naquela cidade.
No Albergue, recomendaram-me a Pulperia Luís. Fui o primeiro cliente do dia a ser atendido, pois os lindos caldeirões de cobre usados para preparar o polvo sequer haviam sido colocados no fogo.
- Não há pressa, disse tranquilizando logo o pessoal da cozinha. Basta que me tragam uma garrafa de vinho, pão e azeite e esqueçam que eu estou aqui.
A turma riu bastante e acabaram por me deixar bem à vontade.
Enquanto ia tomando meu vinho e me deliciando com as fatias daquele apreciado pão molhadas no azeite verde e espesso da região, fui colocando a minha correspondência em dia. De vez em quando me levantava e ia ver como estava indo o preparo do polvo, dando uma cheirada na fumaça que saía do caldeirão. O pessoal do restaurante achava engraçado.
- Por que vocês brasileiros são assim sempre tão divertidos? – perguntou-me a jovem atendente.
- Acho que a gente tem que ser assim pra não chorar, respondi.
Ela achou graça e finalizou dizendo que o vinho era por conta da casa. Gostei muito!!
Notei que havia uma bruxa de pano pregada na parede. Não era a primeira vez que eu via aquilo na Galícia. Parecia uma espécie de amuleto de aceitação geral, algo muito estranho justamente numa região que fora a mais castigada pela inquisição espanhola.
Satisfeito após ter comido (e repetido) o tal polvo, fui visitar a cidade que tem pouco mais de 13.000 habitantes.
Despertei cedo na manhã seguinte e lá fui eu pra caminhada do dia. Cruzei lindas vilas e bosques ouvindo os pássaros cantando nas árvores, quase sempre margeando algum riacho. A Galícia é também a Comunidade Autônoma mais arborizada e mais úmida da Espanha.
Passei por Barbadelo, Rente, Peruscallo, Belante, A Brea, Ferreiros, as Rozas, Vilachá e finalmente avistei Portomarín, a meta dessa minha jornada depois de ter caminhado exatos 22 quilômetros.