Pé de Picolé
Quando criança na minha cidade, conheci muitos malucos de rua. Essa gente vivia atormentada por pessoas que pensavam que eles não sofriam e por isso não se cansavam de atormenta-los. Bastavam encontrá-los para azucriná-los e irritá-los com brincadeiras de mau gosto ou apelidos ilógicos. Entre eles estavam Jacinto Pé de Picolé.
Jacinto tinha uns vinte e poucos anos quando chegou a minha cidade. Viera da Bahia com a família que o criara. Trouxera consigo muita ingenuidade e uma grande disposição para o trabalho. Sabia-se pouco sobre ele. O fato é que tinha problemas mentais, pois seu comportamento era estranho: falava sozinho e tinha pavor por coisas que ele pouco ou nada entendia. Entretanto, possuía uma enorme força física e, como não tinha preguiça, pagava a comida com o trabalho braçal. Era uma mistura de retardado e louco, um verdadeiro mentecapto.
Duas coisas o apavoravam: a guerra e a morte. Em pouco tempo tornou-se conhecido na cidade, sobretudo, devido a este medo incontrolável da guerra e da morte. O pavor que sentia ao ouvir falar de morte e guerra virou motivo para que as pessoas o azucrinassem com brincadeiras de mau gosto. Além de o deixarem apavorado com as brincadeiras que faziam, ainda lhe deram o apelido de Pé-de-Picolé.
Quando alguém falava que a morte estava chegando com a foice no ombro para levá-lo ou que foi chamado para lutar na guerra, apavorado, desaparecia da cidade por um bom tempo.
No entanto ele trazia em si duas reações opostas: uma era o medo da morte e da guerra. Neste caso, sua reação era de um covarde, pois, fugia apavorado ao ouvir falar dessas coisas. Mas, com o alcunha Pé-de-Picolé, não. Convertia-se logo, num valentão, capaz de ferir alguém que o chamasse pelo apelido. Era a maior afronta. Em vez de fazê-lo ficar com medo e fugir, o apelido o transformava, em questão de segundos, numa pessoa violenta, num verdadeiro animal irracional, atacando quem quer que fosse. Sua extremada força o tornava num homem perigoso.
Acredito que todo o ódio que nutria pelo apelido, provavelmente, estaria ligado ao medo de morrer. Para ele, ter o pé gelado como um picolé, significava estar morto. Por isso, não tinha medo do apelido, mas muita raiva. O pavor que sentia ao ouvir falar da guerra, estava também relacionado ao medo da morte. Pensava que as pessoas que iam à guerra não voltavam vivas. Quando alguém por maldade dava lhe a notícia de que uma guerra havia começado e que seria convocado para lutar, punha-se a gritar, dizendo que era muito novo para morrer. Inventava logo desculpas esfarrapadas ou engraçadas. Ninguém conseguia acalmá-lo.
Jacinto Pé de Picolé morreu sozinho, dormindo. Morreu sem saber que morria. Deve ter morrido assim, de propósito, para não ter que encarar o seu maior inimigo: a morte. Ou, para não ver a cara das pessoas que viviam o azucrinando com a conversa de que a morte viria buscá-lo.