“Odirceia”, ou a última Marília do meu amigo Dirceu
“Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem, agrava”.
Machado de Assis, “Esaú e Jacó”
“Essas mulheres ainda acabam conosco”, afirmou o meu amigo Dirceu esvaziando em seguida o copo. Pouco tempo antes, enquanto estava no trem vindo ao meu encontro, Dirceu tinha vivido outra vez uma das suas paixões fulminantes. A batalha cotidiana do homem que ama as mulheres. Dirceu ainda não encontrara sua Marília. “Sossega, Dirceu”, eu disse num tom apaziguador, “em algum lugar deste vasto mundo haverá uma Marília que suspira por você”. Não que eu realmente acreditasse em tal coisa. Não acreditava. Amor para mim é mais entranhas e menos coração. Enfim, não sou um romântico. Mas àquela altura, precisava tirar o meu amigo Dirceu do pântano de lamúrias no qual ele afundava. Escrevo a palavra “pântano” e já me arrependo: é romântica demais. Eu queria mesmo era escrever “brejo”. Sim, Dirceu chafurdava num prosaico brejo lamuriento e cabia a mim resgatá-lo.
Acho que foi o Paulo Francis quem disse que a melhor propaganda anticomunista é deixar um comunista falar. Não serei eu a sentenciar sobre a verdade ou não da famosa boutade. Deixo isso para o leitor mais informado sobre política. Interessa-me aqui algo de mais elevado, mais diáfano, mais fugaz: a mais recente desilusão amorosa do Dirceu. Citei a frase espirituosa do Francis apenas para dar ensejo à minha própria, esta, sim, absolutamente certa. Quando for publicada – postumamente para evitar confusão – a minha obra “Nova Magna Moralia: apontamentos para uma vida enfadonha”, o leitor poderá ir ao livro, abrir no capítulo sobre a amizade e estar certo de que nele constará esta minha humilde máxima: a melhor maneira de tirar da depressão um bom amigo é deixa-lo falar.
Foi com essa convicção no espírito que resolvi dizer ao meu bom amigo: “Então, Dirceu, não vai me contar o que foi que aconteceu? ”. Dirceu pigarreou, puxou um cigarro, oferece-me um outro e eu, pressentindo a melancólica história que estava por vir, aceitei de bom grado, mesmo tendo parado de fumar. O jovem começou: “Sabe como é, ver uma mulher bonita abre pra gente todo um universo de sonhos e de delícias possíveis”. Concordei com a cabeça, exalando a fumaça daquele cigarro barato. “E hoje, quando eu vinha pra cá, ah! você não vai acreditar, vai? Era uma mulher linda. Um rosto persa, cabelos longos e negros como uma noite sem estrelas”. “Calma lá, Dirceu. Não me vá começar com essa coisa de poesia, né? Menos, bem menos”, censurei-o. Dirceu, que já planava em céus de brigadeiro, voltou a si e continuou num tom mais sóbrio: “então, que mulher! Olhos verdes, vestido florido... e lia um livro”. Essa derradeira informação sobre a moça veio num tom de voz tão diferente que não pude deixar de perguntar: “mas o que há de especial no fato de uma mulher ler um livro num trem”? “Era Drummond”, replicou meu amigo.
Compreendi tudo. Dirceu era um monomaníaco. Minto, era na verdade, se me permitem uma ousadia, um “bimaníaco”. E suas obsessões eram este par: as mulheres e o poeta de Itabira. Daí o leitor pode ao menos vislumbrar o êxtase de Dirceu ao ver aquela perfeita Marília com um volume de poesias de Drummond no colo. “Não pude acreditar”, continuou meu amigo, “aquela mulher ali, diante de mim, lendo Drummond, linda, estonteante. Num átimo minha imaginação voou: primeiro o início do hipotético romance, incendiário e alucinante, dois corpos mergulhados um no outro, duas almas mergulhadas nos poemas de amor natural. Então tudo fica mais sério, o incêndio se arrefece um pouco, casamos. Lemos juntos – à noite, na cama, depois de um dia duro de trabalho – o sentimento do mundo. Filhos, contas, o pão de cada dia, a rosa do povo. Enfim, a velhice juntos, os netos, as pequenas alegrias amenas... e o silêncio: claro enigma”.
E così via. Em minha cabeça, naquele momento, diante do castelo que Dirceu erguia das doces lembranças daquela tarde, martelava a lendária pergunta que o saudoso Garrincha teria feito ao técnico da seleção brasileira Vicente Feola na copa de 1958: “já combinou com os russos?". Não, Dirceu não havia combinado com os russos, ou melhor com a moça do “rosto persa, cabelos longos e negros como uma...”. Não era então necessário saber somar dois mais dois que fazem quatro para perceber que na cabeça da beldade de olhos verdes e vestido florido os planos eram outros: talvez encontrar uma amiga, talvez um namorado, talvez caminhar sozinha pela praça da estação sem pensar em homens, mulheres ou praças. Mas divago. Voltemos então o nosso olhar ao afoito Dirceu que tem agora os olhos raiados de sangue e quer continuar a sua tétrica história.
“Então Dirceu, continue”, digo em tom amigável. “Então sentei-me do lado dela”, disse com a voz embargada o apaixonado, “olhei direito o livro: uma antologia do Drummond. Deviam constar ali todas as obras primas. Não hesitei mais. Precisava falar com aquela deusa. Respirei fundo, tomei coragem e, citando o poeta, disse: bom dia: eu dizia / à moça que de longe me sorria”. “E ela? ”, indaguei, “respondeu? ”. “Sim”, retomou Dirceu, “mas preferia que tivesse ficado em silêncio. Ela respondeu com uma voz fanha, estridente, deveras insuportável: não estou longe, não sorri para você, é quase noite e eu detesto esse poema. Ela desceu na estação seguinte e deixou-me ali atônito, destruído”.
“Ah, Dirceu! ”, exclamei, “essas histórias que você conta têm sempre o mesmo fim. Por que ainda insiste? Se as juntássemos, escreveríamos uma odisseia de muitos cantos. Eis aí: não uma odisseia, ó Dirceu, mas uma ‘odirceia’, para adequar o mundo ao seu nome. Você devia coloca-la no papel um dia. Parafraseando o seu Drummond, seria um bom trocadilho, mas não seria a solução. Solução, Dirceu, se é que para o seu caso há solução, é livrar-se desse feitiço no qual alguma Circe enredou-lhe há muito tempo, criando uma teia na qual você está preso a realizar um trabalho de Sísifo”. “Mas o que faço? ”, redarguiu Dirceu desolado. “Larga disso, rapaz!”, respondi, “já não se fazem mais Marílias. E até mesmo a Marília original foi no fim das contas esquecida pelo Gonzaga e este, quando no exílio, terminou num casamento convencional com uma senhora de posses. Em suma, Dirceu, é melhor você largar essa mania de ler”.