Ditos populares

Minha avó sempre dizia: a justiça tarda mas não falha. Assim era dona Odete, representante da sabedoria popular, casada há muito com seu Geraldo, santo homem. Afinal de contas, por detrás daqueles cabelos grisalhos de vozinha escondia-se uma mulher difícil de lidar.

Mas essa história não é sobre a dona Odete e o seu Geraldo, é sobre outro homem em particular, este nada santo, pelo contrário, homem dos infernos: mentiroso, cínico e dissimulado. Grande só no tamanho, tanto é que mais parece um armário três por quatro. O grandalhão sempre se livrava dos problemas. Jamais fora punido, por nada e nem por ninguém. Conseguia ludibriar tudo e todos, e isso desde quando era apenas um pequeno criado mudo.

Quem avisa amigo é: pau que nasce torto, nunca se endireita. O sujeito nem mesmo andava, sequer falava, quando sua mãe o encontrou na cozinha com os armários debaixo da pia abertos, as panelas reviradas e a lata de óleo caída num chão que se transformara em sebo.

“Meu Deus! O que você fez?”, perguntou ela.

O menino todo besuntado de óleo, mascando a chupeta num canto da boca, só mexia a cabeça de um lado para o outro, num gesto negativo de quem diz: não fui eu! Quanta fofura! pensou a mamãe. Quanta cara de pau! pensaria minha falecida vó.

A mãe por sua vez, achando a cena deveras engraçada, aproveitou para fotografar a peripécia do menino, divulgando-a nas redes sociais com a seguinte frase: não adianta chorar pelo leite (óleo) derramado! Rapidamente a foto alcançou mais de mil curtidas. Que as aparências enganam todo mundo sabe, mas ninguém leva isso muito a sério. Vale lembrar ainda que de boas intenções, o inferno está cheio.

Falando em inferno, como cabeça vazia é oficina do Diabo, na época da escola, por conta de uma aula tediosa, o então garoto gordinho jogou sem querer uma bolinha de papel que atingiu, em cheio, a cabeça da professora.

“Quem foi que jogou?”, ela questionou toda a turma.

O de fato culpado, então acuado, sem pestanejar apontou para um moleque de quem nem gostava mesmo. Ele estava de pé, não prestava atenção na aula e conversava com outro amiguinho. Onde há fumaça há fogo, então ele acabou levando a culpa. Vingança é realmente um prato que se come frio. Antes ele o tivesse deixado copiar sua tarefa de casa na semana passada, talvez o apontado seria outro.

“Pode sair de sala!”, ordenou a professora.

“Mas fêssora…”

“Po…”

O garoto nem esperou ela terminar de falar, saiu batendo o pé. Para um bom entendedor, meia palavra basta. Pobre e inocente menino, sequer teve tempo de se defender. A vida é assim: manda quem pode, obedece quem tem juízo.

No ensino médio não foi diferente. Já um adolescente robusto, traiu sua namorada com a melhor amiga dela. Gosto não se discute. Ao serem pegos em flagrante alegou que foi a menina que o seduziu. A santinha do pau oco, como ele a acusou, tinha sido era chantageada e nem mesmo a verdade podia contar. Chantagista sem vergonha, diria dona Odete. O jovem sem escrúpulos possuía um vídeo comprometedor dela com outro rapaz e ameaçou postar para todos da escola se eles não ficassem. É, no fim das contas, o seguro morreu de velho!

Como nada é tão ruim que não possa piorar, sem saber da verdade, a namorada traída acreditava que quando um não quer, dois não brigam, e assim pôs fim a grande amizade que existia entre elas. Quem ama o feio, bonito lhe parece, tanto é que perdoou o namorado. Sua amiga até hoje alimenta a esperança de que ela também a perdoe, de fato a esperança é sempre a última que morre.

E assim foi vivendo impune o lobo em pele de cordeiro, que na faculdade colocava o seu nome nos trabalhos sem ao menos ter feito coisa alguma, seus supostos amigos aceitavam numa boa. É a velha história: quem cala consente. Todos cegos da pior espécie, aquela que prefere não ver.

Já como um marmanjo corpulento e formado, arrumou trabalho numa firma de renome. Como gato escaldado tem medo de água fria, não se abria muito com os colegas de trabalho, apenas com seu chefe. Queria conquistar a amizade dele por interesse puro, vivia jogando verde para colher maduro. Mas o tal chefe era um cara desconfiado, sempre com um olho no peixe e outro no gato. Então o saradão não teve escolha, ou melhor, fez a única escolha que sua índole permitia: puxou o tapete do chefe e tomou o seu lugar. Quem não tem cão caça com gato mesmo. Dinheiro não traz felicidade é uma ova, pensava ele. É a vida! Amigos, amigos, negócios à parte.

Mas como nada dura para sempre, certa noite, por coincidência ou não do destino, o três por quatro caiu do cavalo. Acabou atropelando um casal de velhinhos. Alcoolizado e com várias multas de trânsito, fugiu sem prestar socorro. Se tivesse parado para ajudar teria salvo a vida deles.

Seu Geraldo, o santo homem do qual falei no início, que Deus o tenha, sempre dizia que coincidências não existem, elas são a maneira que o Pai encontrou de permanecer no anonimato. Ele tinha razão, há males que vem para o bem.

Sentindo-se encurralado, o homicida pensou logo num álibi. Decidiu parar seu carro na frente de uma construção. Sabendo que na manhã seguinte estariam ali vários operários trancou-se dentro do porta malas simulando que fora sequestrado. Quando os funcionários da obra chegassem, ele faria barulho e chamaria a atenção do pessoal que o libertaria. Assim, poderia pôr a culpa do atropelamento nos supostos bandidos. Não perderia sua habilitação e nem responderia por crime algum, ou seja, como se já não bastasse, mataria mais dois, só que desta vez coelhos, com uma cajadada só. Todos aqueles trabalhadores, sem muito grau de instrução, seriam as testemunhas perfeitas para garantir, mais uma vez, sua impunidade. É assim: em terra de cego, quem tem um olho é rei. O plano também seria perfeito se não fosse um único detalhe: a pressa. Essa é realmente inimiga da perfeição.

O dia clareou. Não era um dia qualquer, era o dia da caça e não mais do caçador. Quando a cabeça não pensa, pelo menos direito, é o corpo que padece. Por isso é melhor prevenir do que remediar. Se ele fosse realmente prevenido poderia até valer por dois. Seu segundo eu, portanto, o tiraria dali facilmente. Mas quem com ferro fere, com ferro será ferido. Há remédio para tudo nessa vida, menos para a morte.

O incidente ocorreu na sexta-feira à noite, não numa sexta qualquer, mas numa sugestiva sexta-feira Santa. Nada como um dia depois do outro. O sábado era de Aleluia e o domingo, de Páscoa. Nenhum operário apareceu para trabalhar, em nenhum desses dias. Aleluia!

Quem está na chuva é para se molhar, então só lhe restavam duas opções: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, mais ou menos assim. Chuva, ironicamente, era só o que desejava. Mas com nuvem baixa e um sol que racha, começou o coitado a, literalmente, cozinhar dentro daquele porta malas, minúsculo em relação ao seu tamanho. O tiro acabou saindo pela culatra. Ninguém o ouviu gritar, até que sufocou comido pelo bicho. Ao brincar com fogo, acabou de fato se queimando. Breve foi sua loucura e longo seu arrependimento. Aqui ele fez, aqui ele pagou. Acabou colhendo o que mesmo plantou e do próprio veneno, sem saber, experimentou.

Dona Odete e seu Geraldo também já partiram desta para melhor. Partiram juntos, como juntos viveram, tudo bem que atropelados pelo mesmo homem que agora cozido estava, mas Deus, que escreve certo por linhas tortas, tem mais para dar do que o Diabo para tirar. Não é que a velha estava certa: a justiça tarda mas nunca falha!

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Conto selecionado entre os 15 melhores no 5º Prêmio SFX de Literatura promovido pela J.A. Cursino & Editores.

RAFAEL CAPUTO
Enviado por RAFAEL CAPUTO em 25/09/2017
Código do texto: T6124533
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