"MILAGRES" (raramente, mas de fato) ACONTECEM?
Filha de engenheiro formado nos States... herdeiro paterno de indústria próspera, vivia de rendas e agora ‘brincava’ de montar empresas rápidas, que logo fechava por puro tédio, fosse qual fosse o ramo de negócio: dois edifícios não muito grandes lhe rendiam bons aluguéis (mini apês ou salas, havia até um morador poeta famosérrimo), um depósito para mercadorias pecuárias importadas, vapt-vupt; logo surgia outra idéia excêntrica, nunca algo do cotidiano. Neta de um engenheiro formado aqui mesmo (também herdeiro........), descendência discreta de judeus-novos - investiu na bolsa de valores, bem moço ainda, montou uma empresa de construção civil. Sogro e genro, grandes conquistadores rivais em todos os sentidos, inclusive amorosos. Emprestavam-se as conquistas. Presenças constantes nas colunas sociais da época.
A menina - criada pelos dois, duas residências, não sei as intimidades familiares - frequentara escolas, entre laicas e religiosas católicas, de acordo com o preço da mensalidade, não pela qualidade de ensino: quanto mais cara e com atividades extra-curriculares, alienadas, do tipo ‘blasé’ inútil, deve ser melhor... Imaginem a surpresa da vida: foi “cair” numa faculdade de letras governamental, isto é, federal gratuita, prédio pré-fabricado, que pai e avô chamavam de “míseros tapumes”. Faculdade excelente, mas......... não tinha nome granfino chamativo para exibir na tagarelice entre os banqueiros ou homens de altos negócios exibindo os filhos. Centro da cidade, porém local um tanto feio e de pouco movimento. Em todo caso, carrão do ano pela aprovação no vestibular. Vagabundo estacionamento lateral era um aterramento sem portão ou vigia - paravam o motor do carro e pronto!
Início da década de 70. ELA chegou aflitíssima, chorando. Vinha em baixa velocidade, porém quase atropelara um homem que caminhava bamboleante. ELE recuou e caiu na calçada. Mendigo, maltrapilho, mal cheiroso, alto, magro, rosto encovado. (Cabe aqui, para nossa reflexão, o poema “O bicho”, de MANUEL BANDEIRA.) Caiu, ajeitou-se para andar, caiu novamente, chiado de asma, dificuldade respiratória. Telefone público fixo (época ainda muuuito ‘pré-celular’), de parede, na portaria da faculdade, ligou para o pronto-socorro estadual nas proximidades, cruzou dedo nas costas pela mentirona, disse que era o pai dela desmaiado na rua. Voltou ao homem, entregou um copo de leite morno, da cantina, e um sanduíche de queijo. Devorou ávido desesperado. Reparou nele um medalhão de São Judas Tadeu (dizem que “o santo das causas impossíveis), uma falha num dente restaurada com um filete de ouro (seria do tempo da felicidade: ou feliz idade?) e num braço (memorizou anos e anos como esquerdo) tatuagem pequena - maçã e o nome EVA. Motorista muito respeitosamente o deitou na maca dento da ambulância que chegara num tempo mínimo de espera... Mendigo piscou silencioso para o gentil profissional e fez com o dedo indicador um gesto circular, entendido como agradecimento. Ora, como metade da turma ficara espiando os acontecimentos, o professor de latim (intermináveis traduções de Cícero) se enfezou e foi para a biblioteca: Avisem-me quando a irmã-paula e os outros voltarem...”
Ih, muita coisa aconteceu! ELA casou no civil, marido humanista super intelectual (dois bicudos não se beijam!), divorciou, morou um tempinho na Europa, voltou, passou uma temporada em pesquisas lingüísticas entre os índios do Xingu......... Estava na aldeia indígena, confortável tenda, e ligaram a televisão. No Rio, congresso de psiquiatria - médicos idosos, médicos jovens, muita gente de outros países, ‘tudo junto e misturado’, minha linguagem narrativa no século XXI. Repórter chamara para entrevista o médico - um clínico das antigas... - que organizava o congresso: homem alto, magro, traje aparentando tecido caro, displicente jaleco aberto, medalhão... dente... tatuagem (não vou escrever detalhes). Voz inesquecível, meio cantante... Bem mais velho agora, única diferença. Era ELE, não podia ser nenhuma outra pessoa! Mas a tatuagem agora no braço direito?! Escolheu a angústia da dúvida. Desligou precipitada o aparelho. Cacique ficou achando depois que ELA desmaiou pelo calor.........
Verdade ou não, li certa vez que determinadas classes científicas fazem laboratório na rua - é também comum entre os atores escalados paa personagens fora da rotina, a fim de testar os seres humanos - fazem-se passar por cegos, mudos, estrangeiros, sotaques de Pedro e Leopoldina, cariocas disfarçados de paulistas perdidos na Cidade Maravilhosa.........
Quem sabe EUZINHO não encontre um dia uma boa alma que me dê atenção e carinho?
NOTAS DO AUTOR:
1---Poema “O bicho”, de MANUEL BANDEIRA - 27/12/1947 (pesquisem, caros leitores) - “............... O bicho, meu Deus, era um homem.” - 27/12/1947.
2---IRMÃ PAULA - No texto, em letra minúscula e hífen, com o significado (momentâneo nessa estória) de “pessoa piedosa, generosa, caridosa”. ELA realmente existiu no Brasil - freira francesa, da Congregação das Irmãs de São Vicente de Paulo, de Gysegem. Famosa por suas obras de caridade, morreu em 1945 no rio de Janeiro.
F I M