Cidinha
Ela dormia, as pernas dobradas, ainda de sapatos, nua
A janela aberta lhe dava um ar de pureza,
o rosto marcada de uma vida mal dormida se amenizava
diante de tamanha beleza.
Barbeiro Ferrante
Campanile
Quando minha irmã decidiu estudar fora, todos em casa foram afetados, uns alegres, outros, ficaram estranhos.. Ela nova, a mais bonita dá casa, na verdade a mais bonita da rua, meu pai logo ficou falando que não era certo, e minha mãe pelo contrário disse que cedo ou tarde isso ia acontecer, que não criamos filhos pra gente, mas pro mundo. Minha mãe sempre tinha frase que fechava o assunto. Como sempre meu pai se calava e parecia ter aceitado, mas matutava e logo voltava com aos mesmas questões.
Eu gostei , na verdade, eu fiquei foi muito feliz porque finalmente eu teria um quarto só pra mim. Não aguentava mais Cidinha acordada até tarde se avaliando no espelho e a cada cinco minutos perguntado se ela era bonita. Com a notícia ficou leve, sorridente, não era de falar muito com estranhos, depois disso desembestou a falar com todos da cidade, mais ainda para as amigas da rua, que não conseguia esconder a inveja e deixaram de falar com ela.
Quem chamou ela pra estudar na capital foi seu Luis, eu não disse nada pra ninguém, mas várias vezes vi seu Luis com umas conversas estranhas com ela, ao pé do ouvido como se dissesse um segredo. Ele era um senhor ainda jovem, mas era um senhor, a mulher foi embora ha muito tempo e ficou um tipo solteiro que ficava mais na capital do que na nossa cidade, e ninguém sabia direito qual era a dele. Meu pai gostava muito de suas conversas, mais ainda quando falavam de criação dos filhos e da dificuldade da vida, era o assunto que meu pai mais gostava, falar dos problemas que enfrentava.
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Seu Luis fazia um tipo bom, quando vinha pra cidade trazia presente pra todos lá de casa, e cigarro de primeira pro meu pai, corte de tecido pra minha mãe, sabia como se achegar, era boa prosa e era meio rico. Dizia que seu pai tinha até avião em outras épocas, que perdeu no jogo, uma história que repetia a cada viagem. Eu por exemplo ganhei muitos brinquedos quando mais novo e agora ele traz camisetas e livros que nunca leio.
Um dia de tarde passou em casa pra tomar café e disse pra minha minha mãe que cidinha era muito inteligente e que podia ajudar ela a crescer, uma moça assim não podia desperdiçar a vida nesse fim de mundo, talento tem que ser lapidado senão se perde nessa repetição ordinária, no mesmo modo que as outras meninas da cidade. Seu Luis falava como se fosse de outro lugar a gente tentava repetir depois, mais nunca ficava bonito como ele falava.
A menina não cabia em si, alegre, satisfeita. Roque não gostou não, não mesmo, era amigo dela, mas sonhava em namorar, dizia pra todos que um dia casaria com Cidinha, ela nunca falou nada, todos sabíamos que Cidinha gostava de outro tipo de gente, com mais aparência e dinheiro. Roque, coitado, nem de longe era o sonho dela, boa gente, andava desengonçado, tímido e estudou só até a terceira série e trabalhava na venda de seu Carlos desde menino e nunca saio da cidade. Ele insistia, fazia de amigo, ela gostava, quem não gosta de atenção? E Cidinha abusava do coitado, ainda mais quando levava um tropeço com algum namorado. Gente apaixonada fica de um jeito de dar dó.
Passou em casa tarde da noite, com a cara amarrada, não dava um sorriso, e com a garganta embargada ficou só um pouco. Cidinha nem tchum, não disse nada. Ele saiu de repete, Cidinha agiu como se não tivesse nenhum apreço pelo rapaz.
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No dia que ela foi embora, todos acordamos cedo, fomos a rodoviária, Seu Luis tinha um sorriso que atravessava a cara. Bem vestido, elegante mesmo, como se fosse casar, Cidinha não dizia nada, ficou abraçada com minha mãe, mas o rosto estava longe num outro mundo que já lhe visitava em fantasia. Meu pai deu muitas recomendações. Eu sentei no banco da rodoviária fiquei olhando aquele quadro. Na hora que o ônibus saiu minha mãe chorava e meu pai abraçava. Era até bonito de se ver meu pai abraçando minha mãe, que constrangida tentava sair, coisa que nunca gente via dentro dentro de casa.
E foi passando semanas, meses, um ano já tinha se passado e não chegava uma carta sequer , nenhuma notícia dela. Comecei a sentir falta da minha irmã, minha mãe vivia preocupada e meu pai todo desconfiado. Ninguém falava de verdade sobre o assunto. Seu Luís não aparecia mais em nossa cidade depois que levou a menina. Quando um vizinho perguntava algo, dizia que estava ótima, que estava estudando e que o nível do estudo na capital era outro, muito elevado, que demorou um tempo pra ela absorver tudo aquilo, que estava pensando em ser médica e que seu Lus , muito bondoso, era como um pai pra ela. Gostou tanto do esforço dela que ia pagar até faculdade.
Depois de três anos sem dar sinal de vida, ela voltou, magra, triste, cansada e desencantada, nem longe lembrava aquela Cidinha, o brilho dos olhou sumiu, o jeito de flor que acabara de desabrochar se perdeu, a pele fosca, sem o viço de outrora, o sorriso caído, roupas que não combinava com ela.
Nos primeiros dias, mal abria a boca. Minha mãe não deixou ela sair pra lugar nenhum, todos queriam saber o que havia acontecido. Uma perguntação danada, minha mãe muito esperta, não escapava nada, tinha muita inteligência pra sair desse embaraços.
À noite Cidinha penteava o cabelo, lentamente, não perguntava se estava bonita, eu mentiria se ela perguntasse, mas quieta, olhos que escondia algo que ela não dizia, mas que também não calava. Peguei meu pai dizendo que ia matar aquele desgraçado do Seu Luis. As meninas da rua cuspia o veneno perguntado o que houve com ela. Todos sabiam que algo terrível havia acontecido. Cidinha não abria a boca e minha mãe cada vez que lhe perguntavam sobre cidinha na rua, dava um sorriso cada vez mais amarelo e completava, ela desistiu dos estudos, se desiludiu com a capital, que gostava mesmo era daqui da cidade. Algumas vezes mudava e acrescentava que não se acostumou a ver corpos abertos na faculdade de medicina. Cidinha não contava a verdade e nem minha mãe.