Algo vai ficar (Publicado em antologia)

Quando vi os alunos da escola comentando, sem dúvida pensei que fosse mentira. Só mais um boato de internet ou coisa assim. Afinal, agora todo ano tem dessas. Primeiro... Bom, primeiro não! Por que faz muito tempo que querem o fim do mundo! Mas teve 2012, depois aquele papo de Planeta x e outras coisas. E agora essa!

Alguns garotos estavam eufóricos, acho que só estavam assim por que na verdade também não acreditavam, do contrario estariam chorando e chamando por suas mães.

Mas então nos liberaram mais cedo das aulas. E quando cheguei em casa, vi minha mãe chorando no sofá assistindo a TV. Só então percebi que a coisa era séria. Entre um soluço e outro ela me disse:

-Você acredita filho?! Aposto que já sabiam há meses! E só falaram agora, faltando menos de 24 horas! Querem mesmo que a gente se exploda! Ela falou, jogando o controle remoto no chão com tanta força que ele se fez em pedaços.

Todas as emissoras passavam a mesma coisa. O novo presidente dos Estados Unidos fechou as fronteiras e os países da Europa fizeram o mesmo. Todos os vôos cancelados, o exército se espalhando pelas ruas e diziam que o asteróide tinha quase um quilômetro de comprimento. Explicavam sem parar que ele cairia no Brasil e boa parte da América do sul seria varrida do mapa.

Meu pai também chegou mais cedo. Afinal, tudo parou. Ele entrou sem dizer nada, com a cara fechada e sentou ao meu lado no sofá. Mamãe chorava alto, de uma maneira irritante.

-A gente sempre pensa que vai ter tempo pra tudo, não é? Pensei que veria meu filho crescer! A verdade é que passamos tanto tempo trabalhando, buscando algo melhor para as nossas vidas que nem vemos ela passar! - disse meu pai com um olhar perdido. -Pelo menos eu disse ao meu patrão o que sempre quis dizer. Chamei ele de “careca muquirana” e disse que prefiro mesmo que a terra nos engula a ter que continuar trabalhando naquela espelunca, recebendo a miséria que ele me paga.

-E o que ele fez?- perguntei.

-Falou que eu era um cretino, que podia me demitir a hora que bem entendesse, pagar até duas pessoas com meu salário e que só não o fazia por que tinha pena de mim. Eu pensei, já que vamos todos morrer, o melhor que podemos fazer é justamente dizer o que sempre tivemos vontade.

Até achei engraçado o modo com que meu pai encarava a situação. Enquanto isso minha mãe continuava a chorar, agora mais desesperada do que antes, deixei os dois a sós e fui pra rua procurar o Pedro.

Lá fora o caos já estava instaurado. Era gente correndo com tralhas pra todos os lados e carros carregados até o teto subindo e descendo a rua. Todas as pessoas com a mesma expressão de angustia no rosto. O avô do Pedrinho estava na varanda da casa ao lado, sentado na cadeira de costume, fumando um dos seus palheiros fedorentos e assistindo tudo.

-Isso é tudo besteira! -Ele disse com sua voz rouca. - Amanhã vão estar todos aí com cara de palhaço! Eu aposto!

Nisso apareceu Pedrinho, segurando seu cachorro de uma maneira desajeitada debaixo do braço. O bicho estava assustado e se debatendo feito louco.

-E ai David?! -disse cabisbaixo- Vocês vão fugir também?

-Eu não sei! Não sei o que meus pais vão fazer.

-Nós vamos subir o Morro da Ferrugem. Muita gente vai pra lá, parece que lá, por ser mais alto, dizem que é mais seguro.

-Vou falar com meu pai.

-Será que o mundo vai acabar mesmo? - ele me indagou com os olhos cheios d’água.

-Não sei...

Pedro era meu melhor amigo, e eu sempre procurava dizer alguma coisa pra alegrá-lo quando ele ficava pra baixo ou ajudá-lo quando se encrencava. Mas dessa vez eu realmente não sabia o que dizer.

“Bom, pelo menos lá de cima seria como ver tudo de camarote!” Eu pensei. E o pior é que eu nunca pedi pra ficar com a Nicole...

Voltei para dentro de casa e meus pais estavam sentados à mesa e calados.

Embora meio hesitante, perguntei a eles:

-O que faremos então? Vocês querem ficar aqui? Ou querem fugir?

-Fugir pra onde? A TV disse que as estradas já estão todas engarrafadas. Mesmo se saíssemos agora, acabaríamos na estrada...

-Ouvi dizer que muita gente vai subir o morro. Talvez lá tivéssemos alguma chance. -Eu disse, embora nem mesmo eu acreditasse nisso.

Meu celular tocou, e meu coração parou quando vi que era uma mensagem da Nicole:

“Quero que me perdoe por dizer agora e deste jeito, mas sempre gostei de você. Gosto muito! E sempre tive certa vergonha de te dizer. Mas agora eu quero que saiba disso...”

Enquanto eu lia, meu pai falou:

-É! Vamos subir o morro também.

Mal podia acreditar. Fomos colegas desde a primeira série. Tantas conversas, tantos momentos entre nós e nunca nos revelamos. Teve que ser assim, desse jeito?!

Saí apressado, peguei minha bicicleta e num ato sem pensar parti para a casa dela. Mas a poucos metros de casa fui atingido por um carro. Foi de raspão, mas suficiente para me jogar ao chão. O desgraçado nem sequer parou. Levantei e só constatei alguns ralados, mas minha bike estava acabada. Acho que o tombo me fez pensar com mais clareza, pois abandonei a bicicleta e voltei mancando para casa.

Quando cheguei, sentei cansado nos degraus da porta, e chorei. Sozinho e em silêncio para ninguém ouvir.

As horas iam passando, e acho que uma parte de nós ainda não tinha se convencido...

Chamei meu pai que estava na varanda para jantarmos, e o surpreendi fumando um cigarro. Ele havia parado há anos.

Preparamos muita comida, os pratos que mais gostávamos, deixando uma enorme pilha de louça suja, que jamais seria limpa, e eu esperava ansiosamente por mais algum sinal da Nicole. Mas nada aconteceu.

Vestimos nossas melhores roupas e saímos. Na rua, dei de cara com Pedrinho que estava sentado no meio fio.

-Ainda está aqui?

-Meus pais resolveram ficar em casa.

-Por quê?

-Meu avô não acredita em nada, diz que é tudo mentira da televisão. Ele disse que não subiria o morro por nada! Então meus pais também não vão.

-David! Vamos logo! - Meu pai gritou ao lado do carro.

Não sei explicar o que senti. Não soube o que falar, apenas apertei sua mão e corri para o carro. Fiquei olhando para ele enquanto o carro se afastava até dobrarmos a primeira esquina.

Logo no inicio da subida, em uma estrada estreita de chão batido, nos deparamos com uma enorme fila de carros, alguns já abandonados até mesmo com as portas abertas e uma multidão de pessoas subindo o morro a pé.

Descobri, tateando os bolsos, que havia esquecido meu celular no carro. Mas era tarde demais, já estávamos longe dele. E era tarde demais também para pensar na Nicole. Onde ela estaria agora? O que estaria fazendo? Coisas que eu jamais saberia.

Quando chegamos lá em cima, vimos muita gente chorando, se abraçando, talvez se perdoando por erros passados. Meus pais agora pareciam mais tranqüilos, ao menos pareciam... Quanto a mim, apesar de toda essa história eu estava bem, acho que estava bem.

Afastamo-nos um pouco. Meus pais se sentaram no chão e eu me estendi sobre a grama úmida, olhando o céu estrelado. Ouvi um murmurinho ao nosso lado, de algumas pessoas se aproximando, então alguém pôs a cabeça diante da minha e falou:

-Já disse que gosto de você?

Levantei de súbito e vi que era ela.

-E eu já te disse?...

-Talvez seja nossa última chance... -ela completou.

Chegou perto de mim e me abraçou quase me sufocando. Senti seu rosto quente e pude entender de um modo que nunca poderei explicar, que valeu a pena. E mesmo que nos percamos para sempre... Todos nós. Penso que algo de cada um vai ficar. De mim, serão essas vagas lembranças, e da Nicole, aposto que serão seus olhos, aqueles olhos grandes e verdes. Um olhar que vai para sempre brilhar entre as estrelas.

Eduardo Kessler
Enviado por Eduardo Kessler em 11/09/2017
Reeditado em 11/09/2017
Código do texto: T6111442
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