K.

Ela dizia que ficava melancólica depois da quarta ou quinta dose e por isso evitava beber.

Eu bebia praticamente sozinho em nossos encontros, e ela ficava me observando, sempre, com um olhar curioso, quase felino. Frequentemente eu me via na escuridão do meu quarto, com um cigarro aceso e uma lata de cerveja na mão, enquanto ela permanecia deitada, apenas me olhando, sem dizer uma palavra. K. não acreditava no amor da mesma forma que as outras pessoas. Tinha uma visão filosófica de que o amor romântico era impraticável sem que uma pessoa oprimisse a outra. Acreditava que o amor devia ser transcendental sem apego, e que todo mundo estava fazendo tudo errado. Por isso se privava de relacionamentos convencionais. Ela não deixava de viver suas paixões e seus arrebatamentos, mas tomava a porta da rua sempre que a coisa começava a ir para um lado que não lhe agradava.

Eu me perguntava o que ela via em mim, já que eu era um cara completamente convencional, monogâmico e dado a arroubos de sentimentos. Mas ela estava lá, me olhando enquanto eu acabava um cigarro antes de dormirmos, ou quando eu tentava tirar algum som do meu violão, - no que eu não era particularmente muito bom, confesso -. K. também gostava de ler os rascunhos dos meus textos, e sublinhar as passagens que achava interessantes. Ela dizia que minha poesia a consumia por dentro e se aninhava em sua cabeça, mas que raramente conseguia descrever como se sentia a respeito. Eu respeitava seu silêncio, apesar de que, no fundo, aquilo me incomodava. Muito do que tinha escrito nos últimos tempos foi justamente feito pensando nela e em nossa história, mas eu não ganhava nada além de olhares misteriosos e algumas linhas riscadas nos textos.

K. sabia como me revirar o estômago apenas com um olhar. E eu me perdia nas bolas pretas que eram seus olhos... e me perguntava se ela também se perdia nos meus.

Eu só tinha dúvidas e questões não respondidas quando se tratava dela.

Naquela noite, K. havia pego no sono enquanto eu escrevia, e roncava em minha cama, completamente nua. Larguei o computador com um texto pela metade e caminhei pelo quarto, e depois pela sala, procurando algo que eu talvez tivesse perdido e não tinha me dado conta.

Um dia K. iria embora e não voltaria mais. E eu estava cansado de dar de cara com essa certeza e não saber o que fazer com a perspectiva... Muito menos me sentia pronto para lidar com sua ausência definitiva na minha vida.

Talvez eu devesse me adiantar, dizê-la que não estava nem aí para esse papo de transcendentalismo, de opressão ou sei lá o que mais ela gostava de falar. Na prática éramos pessoas decentes e plenamente capazes de chegar num acordo sobre o que era bom para nós mesmos. E aquela incerteza toda era uma merda para mim.

Voltei para o quarto decidido a acordá-la e ter “a conversa”, que eu sabia que iria terminar na nossa separação.

Mas ela estava lá, deitada, cochilando com apenas um facho de luz da lua iluminando seu corpo. A respiração pesada, pela boca, pois vivia com o nariz entupido, fazia com que seus seios se mexessem lentamente para cima e para baixo. Talvez fossem os seios mais bonitos que eu já tinha visto em minha vida. Ou talvez eu só estivesse cego e louco de paixão por ela.

Me sentei ao seu lado e segurei sua mão. Ela abriu os olhos, e me encarou sem dizer nada.

Eu sorri e me vi incapaz de falar sobre o que eu estava sentindo, estando sob o risco de perdê-la.

- Você fica tão mais bonito quando me olha com essa cara séria. – Disse-me.

- Não sei de onde você tira isso. – Respondi encabulado.

- Amo isso em você, mais do que qualquer outra coisa.

Completamente desarmado, não soube mais o que dizer, e me resumi a me deitar do seu lado em silêncio.

Em algum ponto, caímos no sono juntos, e quando acordei, K. não estava mais deitada na cama, mas eu podia ouvir sua voz vinda do banheiro.

Ela não tinha ido. E talvez não fosse embora, afinal.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 05/09/2017
Código do texto: T6104786
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