Histórias de um homem sem alma

Eu andava no meio-fio às 2 da manhã.. Eu não sei realmente o que eu estava fazendo lá, mas estava bêbado, quase caindo, recitando algum texto que decorei para a escola há mais de 10 anos.

Só agora entendo e percebo o quão insignificante era minha tristeza e minha agonia. O mundo continuava girando e as pessoas continuavam vivendo. Ainda bem que eu não estou mais lá.

Escritórios lotados com seus ideais calvinistas, igrejas lotadas de pecados imperdoáveis, lojas com roupas de padrões insustentáveis. E eu, andando em meio-fio às 2 da manhã.

Dois passos para o lado, e eu era atropelado. Dois passos para o outro, e eu caía do viaduto.

Ironia dizer que eu andava em meio-fio aquela noite.

Eu andei em meio-fio durante minha vida toda.

Decisões bilaterais para se tomar, escolhas para se fazer. E eu não tinha opção, fazia parte do sistema.

Ou você tá dentro, imerso nisso, ou você logo é excluído e as pessoas continuam a passar por você e seguir suas vidas como se você fosse algo invisível.

Aquela noite, fazia lua cheia. Talvez o céu queria iluminar ainda mais o meu fracasso e expô-lo para as pessoas verem. Elas estavam lá. E mesmo assim não me viram.

Talvez eu só precisava de algum afago, alguém dizendo que vai ficar tudo bem, mesmo sabendo que isso era impossível.

Tudo deu errado, mas pelo menos hoje não dá mais.

Voltemos a história.

Você acha que tem razão para se achar a pessoa mais triste do mundo? Talvez tenha. Mas não poderia interpretar essa razão de uma maneira tão pessimista como eu interpretei.

Era dez da noite e tinha tudo para se transformar em mais uma das noites de sentimentos efêmeros, que eu insistia em achar feliz.

Mas eu não era feliz, mesmo tendo motivos para ser. Eu tinha uma família unida, eu tinha uma namorada, eu tinha amigos.

Pelo menos os amigos eu não perdi.

Minha família sempre foi muito religiosa, algo como me prender dentro de casa caso eu não frequentasse a igreja em algum domingo, ou não prestasse atenção à homilia.

Aquela noite eu explodi. Depois de várias horas de discussão sobre minha ceticidade regiliosa, fui expulso de casa. Meu pai se negava em acreditar que me amava mais que amava seu ídolo invisível, e sabendo que era impossível aceitar que suas falhas e erros eram por demérito dele, pesava em cima de mim minha falta de oração.

Mas eu ainda amava eles.

Eu fui para a festa completamente arrependido de dizer que Deus não existe, mesmo sabendo que estava certo. Vinte anos de acolhimento era o suficiente para perdoá-lo de qualquer coisa.

Qualquer coisa era melhor que o orfanato.

Mas eu ainda tinha amigos muito fiéis. E um deles fazia 18 anos naquela noite.

Encontrei Jonas, o mais velho amigo, de 25 anos, esse que aceitou de prontidão uma estadia temporária minha em sua casa depois de minha expulsão, e fomos para a casa de Marcos, o aniversariante.

Em um padrão jovem, digamos que a festa não poderia estar melhor.

Tinha muito álcool, tinha música, tinha mulheres.

E eu estava conversando com minha namorada e bebendo com meus amigos.

Dante escreveu o resto da noite, com uma leve pitada de inferno.

Nada fora do normal aconteceu, até o caçula de Marcos chegar drogado em sua casa. Todos sempre acharam o rapaz endiabrado mas sua mãe o continuava a proteger.

Ninguém gostava dele, exceto sua mãe. E continuou assim até o resto de sua vida.

Tudo estava bem até este demônio começar a brigar com Marcos após seu irmão negar dinheiro para ele comprar drogas. Mas aposto que não existia apenas esse problema.

Felipe, Hugo, João e Paulo, eu espero vocês no inferno.

Felipe, o irmão de Marcos, chegou em sua casa exatamente como qualquer assassino de aluguel chega para uma carnificina: com um tiro para o alto.

Deus, se existisse, pagaria VIP para assistir um massacre: Em menos de 10 minutos, 25 pessoas foram brutalmente assassinadas a sangue frio.

Jonas, morto a queima roupa, não conseguiu dizer o quanto amava sua ex-esposa.

Mateus, morto estrangulado, não conseguiu pagar a aposta da faculdade e fazer todo mundo rir.

Fernanda, morta estuprada, não conseguiu olhar para mim antes de ser esquartejada.

Fernanda era minha mulher.

Não conseguiram chamar nem a polícia.

E eu estava lá, escondido em baixo dos panos, exatamente como estive durante toda a minha vida. Mas agora era a noite dos outros que acabavam num passe de mágica.

A minha noite durou até às 2 da manhã.

Era meia noite e meia e eu não sei se mais alguém saiu vivo daquele lugar.

Eu assisti todos os meus amigos caírem à minha frente, e não havia nada que eu pudesse fazer.

Eu não conseguia ficar desesperado nem chocado. Eu apenas aceitei que eu era o predestinado a esperar a morte exatamente como esperei a vida:

Sem ninguém ao meu lado.

Aceitando o fato de todos estarem mortos (minha dignidade humana já tinha desmoronado), o irmão de Marcos e seus comparsas foram embora. Eu queria ter sido morto, talvez minha noite teria terminado mais cedo. Mas parece que até na hora da morte eu sou esquecido. E eu não conseguia me mexer.

Um sentimento de vingança passou raspando pela minha cabeça, mas só foi o suficiente para me levantar e checar os corpos. A polícia já estava chegando. E eu não queria ser incomodado por falsos salvadores em minha aflição.

Eu saí à rua.

E minha noite piorou mais um pouco.

Estava eu, distraído e com lágrimas febris caindo em meu rosto, andando sem rumo no acostamento de uma rodovia.

Talvez eu andei meio quilômetro, talvez tenha andado metade da cidade, mas para mim foram os mais extensos minutos da minha vida.

Talvez eu não queria ser salvo ao ser atropelado em plena uma da manhã, mas não foi minha intenção pisar em falso no último buraco que a minha vida botou para eu afundar.

Um velhinho com um sorriso no rosto foi a última pessoa com uma feição honesta que eu vi aquela noite.

Esse velhinho foi capaz de se arremessar em frente ao carro para me empurrar. Ele não falou nada, apenas fez.

Talvez ao pensar que tinha pouco tempo de vida, queria dar mais angústia a uma vida recém-destruída.

Não, aposto que não.

Ele realmente era bom, a última pessoa que fez uma coisa pensando meu bem.

Mas ele se foi. Ele se foi sem nenhuma explicação. Apenas se foi.

Não deixou nenhuma palavra, não deixou nenhum VIVA, não deixou nenhum sentimento.

Apenas deixou um empurrão...

...e eu me via andando sobre o meio-fio. Não sei de onde saiu duas garrafas de vodka vazias em minhas mãos. Não me lembro de onde posso ter comprado e como posso ter bebido.

Também não lembro quando começara a chover, nem porque eu esqueci tudo que havia acontecido.

Eu só me lembrei de um meigo sentimento de felicidade ao olhar meu relógio bater duas horas da manhã e saber que tudo ia ficar bem.

E que minha namorada provavelmente estava em casa dormindo.

Provavelmente meus pais estavam me esperando chegar em nosso pequeno apartamento.

E meus amigos estavam rindo de alguma piada, mas sentindo minha falta.

Não sei como eu estava bêbado mas estava andando tão convicto recitando Galeano sobre um meio-fio.

Também não sei se o viaduto não aguentou o peso da culpa de minha penosa alma que insistia em esconder tudo de mim.

Talvez eu tenho pulado...

Leonardo Nali
Enviado por Leonardo Nali em 04/09/2017
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