Pedras
Após uma noite de sonhos tranquilos, Tiago levantou-se às quatro e meia, para caminhar no calçadão de Copacabana, como costumava fazer três vezes por semana. Lavou o rosto, vestiu-se, comeu uma banana e, em seguida, desceu pela escada e dirigiu-se à praia, que ficava a três quarteirões de seu prédio.
Era inverno; ainda estava escuro quando ele chegou ao calçadão. Não havia nuvens no céu; viam-se estrelas e um filete de lua. Tiago andava rápido: sua caminhada era cronometrada; para cumprir a distância nos quarenta e cinco minutos de que dispunha era preciso andar rápido.
Ele não escutava música enquanto caminhava, pois dizia gostar de ouvir os sons do início dia - ainda que em Copacabana isso incluísse também barulho de carros e ônibus. “Fones abafam o som das ondas e dos pássaros”, justificava-se. Enquanto andava contava os que usavam fones: chegou a conclusão de que, em média, 93% das pessoas andam com fones, esses tampões de ouvido pós-modernos.
Raramente escutava as ondas: só com ressaca era possível ouvir a arrebentação; o mar ficava longe demais para serem ouvido em dias de calmaria. Certa vez chegou a pensar em usar fones para escutar o som de ondas quebrando (com certeza existe uma dessas gravações de sons da natureza só com ondas), mas refutou a ideia imediatamente. Achava ridículo andar em esteiras, vendo TV ou ouvindo música, e a ideia de escutar sons da natureza era tão imbecil como andar em esteiras, olhando para a própria imagem refletida num espelho.
Na verdade, Tiago pensava que a própria ideia de caminhar como meio de praticar uma atividade física era uma imbecilidade, mas não lhe restava outra alternativa: era isso ou nada. Andar daquele jeito - com hora marcada e trajeto pré-definido, tendo como destino a própria casa de onde havia saído – era para ele uma idiotice, porque a caminhada perdeu a função de levar o homem a um destino físico: o homem agora anda para emagrecer, para manter a forma, para melhorar a circulação, para liberar endorfina etc.
Nesse contexto, as academias são o auge da imbecilidade. Esteiras, aparelhos, toda uma estrutura montada para que as pessoas possam se exercitar pura e simplesmente: máquinas para perder calorias, para enrijecer os músculos; o corpo como fim em si mesmo e não como meio de produzir ou criar; a forma pela forma. Puro esforço, sem criação.
Embora Tiago pensasse assim, lá estava ele, três vezes por semana, quarenta e cinco minutos de caminhada, para exercitar o corpo, que de segunda a sexta suportava dez horas de trabalho - sentado, em frente a uma máquina - sem contar o tempo gasto no trânsito. Isso sem falar do trabalho que levava para casa.
O computador era o centro da vida de Tiago: tanto no trabalho quanto em casa, tudo estava concentrado na máquina; era nela que Tiago construía e armazenava os projetos exigidos pela empresa, bem como se divertia, com jogos, música, filmes e conversas "on line", redes sociais etc. Mesmo passando o dia inteiro em frente de uma tela, no escritório, Tiago, assim que chegava em casa, ligava o seu PC e lanchava em frente à tela.
Tiago se sentia perturbado quando refletia sobre a ausência de destino físico da caminhada, do exercício, e tentava descobrir em que momento o homem passou a andar por andar. No entanto, não conseguia sustentar a reflexão por muito tempo; logo outro pensamento desviava a sua atenção. Pensava na alienação, fruto do sistema de produção, pensava na morte de deus e conseqüentemente na morte da alma, que libertava o corpo para que ele fosse só corpo, um fim em si mesmo, e não um invólucro de algo perene; mas pensava também que o corpo não servia a si mesmo; o corpo, livre da alma, tornou-se objeto de outros corpos, meio para outros fins.
Refletia, após, sobre os esportes e as danças, que envolviam o corpo em movimentos coletivos, que incitavam o corpo a se mexer, a tentar se encaixar nos jogos, no meio de outros corpos. Imaginava homens correndo atrás da bola e casais girando num salão.
E aí uma seqüência de imagens dominava o seu pensamento: um corpo nu, com um rosto sem olhos (buracos no lugar deles), cuja pele parecia plástico – sem pelos, sem rugas, sem manchas, como um manequim – que andava em círculos. Em seguida, Tiago não conseguia pensar em mais nada relacionado ao assunto. Essas imagens mórbidas eram o ponto final de seus devaneios existenciais.
As estrelas ainda reluziam quando Tiago chegou à metade de seu trajeto; ele se virou e começou a percorrer o caminho de volta. Faltavam dezenove minutos para chegar ao destino quando as pedras portuguesas brancas do calçadão, em forma de ondas, começaram a levitar, suspendendo Tiago que, embora pudesse fugir, preferiu não fazê-lo: continuou andando sobre as ondas de pedra de flutuavam cada vez mais distantes do chão.
Diversos transeuntes mantiveram a marcha sobre as ondas flutuantes; outros ficaram no solo - mas nenhum deles parou de andar. As ondas brancas formaram um enorme círculo a cinquenta metros de altura. Tiago continuou andando, embora já estivesse dezessete minutos atrasado.
Era inverno; ainda estava escuro quando ele chegou ao calçadão. Não havia nuvens no céu; viam-se estrelas e um filete de lua. Tiago andava rápido: sua caminhada era cronometrada; para cumprir a distância nos quarenta e cinco minutos de que dispunha era preciso andar rápido.
Ele não escutava música enquanto caminhava, pois dizia gostar de ouvir os sons do início dia - ainda que em Copacabana isso incluísse também barulho de carros e ônibus. “Fones abafam o som das ondas e dos pássaros”, justificava-se. Enquanto andava contava os que usavam fones: chegou a conclusão de que, em média, 93% das pessoas andam com fones, esses tampões de ouvido pós-modernos.
Raramente escutava as ondas: só com ressaca era possível ouvir a arrebentação; o mar ficava longe demais para serem ouvido em dias de calmaria. Certa vez chegou a pensar em usar fones para escutar o som de ondas quebrando (com certeza existe uma dessas gravações de sons da natureza só com ondas), mas refutou a ideia imediatamente. Achava ridículo andar em esteiras, vendo TV ou ouvindo música, e a ideia de escutar sons da natureza era tão imbecil como andar em esteiras, olhando para a própria imagem refletida num espelho.
Na verdade, Tiago pensava que a própria ideia de caminhar como meio de praticar uma atividade física era uma imbecilidade, mas não lhe restava outra alternativa: era isso ou nada. Andar daquele jeito - com hora marcada e trajeto pré-definido, tendo como destino a própria casa de onde havia saído – era para ele uma idiotice, porque a caminhada perdeu a função de levar o homem a um destino físico: o homem agora anda para emagrecer, para manter a forma, para melhorar a circulação, para liberar endorfina etc.
Nesse contexto, as academias são o auge da imbecilidade. Esteiras, aparelhos, toda uma estrutura montada para que as pessoas possam se exercitar pura e simplesmente: máquinas para perder calorias, para enrijecer os músculos; o corpo como fim em si mesmo e não como meio de produzir ou criar; a forma pela forma. Puro esforço, sem criação.
Embora Tiago pensasse assim, lá estava ele, três vezes por semana, quarenta e cinco minutos de caminhada, para exercitar o corpo, que de segunda a sexta suportava dez horas de trabalho - sentado, em frente a uma máquina - sem contar o tempo gasto no trânsito. Isso sem falar do trabalho que levava para casa.
O computador era o centro da vida de Tiago: tanto no trabalho quanto em casa, tudo estava concentrado na máquina; era nela que Tiago construía e armazenava os projetos exigidos pela empresa, bem como se divertia, com jogos, música, filmes e conversas "on line", redes sociais etc. Mesmo passando o dia inteiro em frente de uma tela, no escritório, Tiago, assim que chegava em casa, ligava o seu PC e lanchava em frente à tela.
Tiago se sentia perturbado quando refletia sobre a ausência de destino físico da caminhada, do exercício, e tentava descobrir em que momento o homem passou a andar por andar. No entanto, não conseguia sustentar a reflexão por muito tempo; logo outro pensamento desviava a sua atenção. Pensava na alienação, fruto do sistema de produção, pensava na morte de deus e conseqüentemente na morte da alma, que libertava o corpo para que ele fosse só corpo, um fim em si mesmo, e não um invólucro de algo perene; mas pensava também que o corpo não servia a si mesmo; o corpo, livre da alma, tornou-se objeto de outros corpos, meio para outros fins.
Refletia, após, sobre os esportes e as danças, que envolviam o corpo em movimentos coletivos, que incitavam o corpo a se mexer, a tentar se encaixar nos jogos, no meio de outros corpos. Imaginava homens correndo atrás da bola e casais girando num salão.
E aí uma seqüência de imagens dominava o seu pensamento: um corpo nu, com um rosto sem olhos (buracos no lugar deles), cuja pele parecia plástico – sem pelos, sem rugas, sem manchas, como um manequim – que andava em círculos. Em seguida, Tiago não conseguia pensar em mais nada relacionado ao assunto. Essas imagens mórbidas eram o ponto final de seus devaneios existenciais.
As estrelas ainda reluziam quando Tiago chegou à metade de seu trajeto; ele se virou e começou a percorrer o caminho de volta. Faltavam dezenove minutos para chegar ao destino quando as pedras portuguesas brancas do calçadão, em forma de ondas, começaram a levitar, suspendendo Tiago que, embora pudesse fugir, preferiu não fazê-lo: continuou andando sobre as ondas de pedra de flutuavam cada vez mais distantes do chão.
Diversos transeuntes mantiveram a marcha sobre as ondas flutuantes; outros ficaram no solo - mas nenhum deles parou de andar. As ondas brancas formaram um enorme círculo a cinquenta metros de altura. Tiago continuou andando, embora já estivesse dezessete minutos atrasado.