Não sou de dançar
Ele entrou, que nem estrela de filme blockbuster chutando a porta. Não era pra chamar a atenção, dizia ele, era a atenção que o chamava, a façanha de tomar todos os olhares para si era apenas consequência de sua existência fodarástica. Ele não respirava o mesmo ar que nós. Artur Del Toro, um semideus.
Bom, aparentemente acreditavam nisso, e por ironia assim ocorreu. Cada par de vista acompanhava seu passo carnívoro. Cada calcinha daquele local se molhou, e os cuecas se contorciam num misto de idolatria e inveja. Todos queriam ser Del Toro, todos queriam ser uma máquina de likes no Instagram, todos queriam felicidade eterna. Eu queria outra cerveja.
O cheiro de burrice coletiva me ardia o nariz e corroía minha paz. Como poderiam ser assim? Tudo bem, também já tive meus dias descartáveis, mas a vida sozinha me levou para fora dessa bolha e eu achava que era o andamento natural para todos os seres que respiram. Que inocência.
- Santi, pelo menos disfarce. Parece que vai matar todos ao redor.
- Passou pela cabeça.
- Vamos, deixe de ser bicho, dançaremos hoje. Me deve uma dança. Pense que poderá fazer inveja à Del Toro com uma mulher como eu nos braços.
- Ele não iria querer nada contigo, ou comigo, ou com qualquer um nesse bar, somos índios sem banho aos olhos desse cretino.
- Ta, ta, ta. Apenas acompanhe meus passos para eu não dançar sozinha.
- Oh, Livia. Sabemos que sua performance melhora em 200% quando está sozinha. Vá lá, conquiste seus 10 segundos de atenção. Erga a formosa raba.
- Então quer dizer que Santiago Luz sente ciúmes de mim? Não creio.
Na verdade Livia reprimia qualquer traço de amabilidade da minha parte pelo simples fato de existir, mas me cedia ótimas madrugadas.
- É o que diz, moça.
Livia, ótima colega de trabalho, companhia válida dentro do mundo corporativo. Manuseava as planilhas e o quadril como ninguém, era bem flexível também, nas reuniões, escalas de trabalho, em cima do colchão, embaixo de mim.
Lá se vai Livia, como eu esperava, para perto do ator decadente, era lá que sua dança valia, era o palco onde ela pretendia subir, mostrar sua arte. Vá moça, voe, plane de amor e pouse em chão macio. Torço de longe.
Três músicas foram o suficiente para perdê-la de vista, não que eu necessariamente quisesse encontrar. Estava ocupado demais pensando dentro da brasa do cigarro se alguma canção minha ou quadrinho ou fotografia ou poema meu iria vingar nessa vida, se alguma parte de mim sairia do caderno e tomaria 3 minutos da atenção de alguém que eu nunca veria pessoalmente. Sou uma metralhadora ambulante, pensei. Desesperado para acertar qualquer arte e rasgar meu terno, sumir dos edifícios, escadas rolantes, horários de pico no Metrô e do homem vazio que gasta saliva fiscalizando rabo de figura pública.
Já é tarde, melhor partir.
- Garçom, saideira. Grato. Aqui aceita VR? Não? E crédito? Belezura. Cobra 20 no crédito e o restante aqui. Pode cobrar a taxa de serviço nesse, acho que passa. Sabe onde tomo um bus pra Santa Cecília? Certo. Valeu. Paz.