Arroz mascado pela morte
Certa vez um caminhão saiu da estrada e afundou num lodaçal. O motorista, a mulher e um filho pequeno morreram afogados no brejo, pois a cabine mergulhou fundo com o peso da carga. Era um Mercedão. A carga? Arroz de terceira, todo quebrado. Isso aconteceu não muito longe de casa, num bairro residencial de baixa renda. Muita gente correu pra pegar aquele arroz enlameado. Mergulhavam no brejo e ressurgiam tingidos de barro, vitoriosos com seus sacos de arroz moído e sujo. Faziam isso enquanto os cadáveres ainda estavam lá afundados. Quando foi isso? Na era FHC, uma época de crise tão profunda e extensa que já havíamos nos acostumado com ela. Não mergulhei no lodo, mas ganhei um saco de arroz de alguém. Levei pra casa. O saco estava furado, e uma água barrenta pingava dele. Era um arroz mascado pela morte. Minha mãe não quis saber daquilo, e tive que sumir com ele.
Não me lembro como fiz isso.