O ENCONTRO
O ENCONTRO
Nos lábios tímidos de Clareana um arremedo de sorriso surgia. Toda vez que Jurandir Antonio abria aquela porta. E eram os olhos. E as faces. E tudo nela parecia se abrir. As sobrancelhas arqueavam em pelos ralos. Falhados. Meio louros. Meio castanhos. Um ar de pássaro em pleno voo. E ele era o céu aonde vencia os ventos.
As aulas de desenho geométrico se tornavam interessantes. O professor sabia como cativar a atenção da classe. E dela, cativava tudo. Aquele jeito despojado de se largar na mesa. Aquele jaleco amassado. Encardido de poucas lavagens. As calças jeans surradíssimas. A camiseta puída de tanto uso. E Clareana se perdia de tanto sossego.
Jurandir Antonio era estudante de engenharia na USP. Ministrava as aulas para sobreviver. Morava no CRUSP. Viera para São Paulo havia três anos. Deixara mãe e irmãos em Sarutaiá. Aldeia indígena há poucas horas de Ourinhos. Terminaria o curso no próximo ano. O pai de um colega conseguira colocação como estagiário na empresa em que trabalhava. Jurandir Antonio estava confiante.
Era o ano de 1968. Os militares estavam no poder. Jurandir participava da União dos Estudantes. Distribuía panfletos e promovia encontros ligados ao movimento comunista. Clareana pouco ou nada sabia disso. Bastava inundar-se da figura pouco convencional daquele professor de desenho.
Finalmente Jurandir percebe o interesse de Clareana. Convida-a para tomar uma Coca-Cola no bar da esquina do colégio. Um mar revolto de emoções inexplicáveis a invade. A tarde estava morna e indolente. E ele ali. Bem ali. Junto. Só os dois. Isto era eterna primavera. Ele falava sobre política. O Capital, de Marx. O movimento ativo dos estudantes perante a classe operária. E outros assuntos afins. Mas Clareana só ouvia. E se encantava com a desenvoltura dele.
Vieram as férias de julho. Trinta dias desperdiçados. Trinta dias de silêncio. A vida seria apenas uma besteira superficial. Estacionara-se na figura indelével de Jurandir Antonio. Seus pensamentos se espreguiçavam nas lembranças. Daquele único encontro.
Os olhos de Clareana reclamavam o corpo de Jurandir. Mas não foi ele que surgiu quando a porta se abriu. Naquele primeiro dia de aula. Depois das férias.
A diretora da escola trazia a mortífera notícia. Lorena substituiria o professor Jurandir Antonio.
Fora golpeada. Nacos de perguntas irrespondíveis afundavam sua frustração. Para debaixo da cadeira. Clareana mordia aquele instante. Que não dava espaço para sua dor.
Em seus dezesseis anos era esta a primeira vez que chegara pertinho. De entender o que era morte.
Os dias seguiam tecendo tédios e mais tédios. Nada se ouvia na escola sobre o destino de Jurandir Antonio. Até que um colega de outra sala a chama. E lhe entrega um envelope. Amassado. Seu nome está ali. Escrito em vermelho. E ela soube. Na hora. Que era de Jurandir.
Entre o frio dos azulejos do banheiro das meninas. E o fogo incandescente que lhe incendiava a alma. Clareana lia: “Querida camarada, são dezoito horas. E escrevo ao som da Ave Maria. Que enche de paz os corredores do pavilhão onde estamos. Nós, os presos políticos. Muitos camaradas não suportaram as torturas no pau-de-arara. Os choques elétricos. Depois dos jatos de água fria. Unhas arrancadas com alicate. Dentes quebrados aos murros. Mas eu, Clareana, suportei.
Seu rosto lívido. Emoldurado por cabelos longos e perfumados me deu a força que precisava. Para sobreviver. Para poder escrever. Que pense em mim. Que jamais me deixe só. Aconteça o que acontecer. Talvez eu não resista por muito tempo. Mas Fernando, o portador desta carta, estará ciente de tudo. E dará a você notícias minhas. Agora fecho os olhos e a vejo. Minhas lágrimas são suas. E a sinto bem perto. Isso ninguém pode me tirar. Tortura nenhuma pode destruir seu rosto. Seu sorriso. Sua doçura.
Com o que ainda resta de mim, seu camarada e companheiro, Jurandir Antonio.”
Ao sair, Fernando a espera. Seu semblante era eterno inverno. Tem mais notícias de Jurandir.
Clareana ouve: “Está consumado!”
Mírian Cerqueira Leite