Precisa-se de teólogo
“Precisa-se de Teólogo”
Dizia a placa na entrada de uma grande igreja evangélica. Só poderia ser um sinal. Na verdade, ele já não acreditava mais nessas coisas de sinal, milagres, etc. Mas aquele anúncio o pegou de surpresa. Jamais vira em todos seus cinquenta anos uma placa que oferecia vaga para teólogo e numa igreja evangélica. Resolveu entrar. Ele aproximou-se de um senhor que limpava o santuário.
- Bom dia, senhor. Meu nome é Carlos e gostaria de me candidatar à vaga de teólogo.
- Bom dia. Espera um minuto. - O velho tirou do bolso um celular e discou os números. Se afastou para ter um pouco de privacidade. Carlos observava a conversa do velho com alguém do outro lado do celular. O velho tinha uma risadinha chata, de hiena. Aquela risadinha deixou Carlos preocupado, mas assim que pensou em desistir o velho desligara o celular e disse-lhe: - Está vendo aquela placa vermelha? Ali tem uma escada. Pode subir e no corredor entre pela segunda porta a direita. O reverendo irá recebê-lo. - Carlos agradeceu e subiu as escadas.
No corredor, Carlos teve um mal pressentimento. Ele era escuro. Na verdade ele tinha uma iluminação bem fraca e podia ouvir o som de um órgão. O cenário parecia de um filme b de terror. As cruzes sem cristo nas paredes davam um tom a mais de terror no cenário. Passou pela primeira porta que tinha uma janelinha, mas o interior da sala totalmente escuro. Chegou à segunda porta e pôde ouvir que o som do órgão vinha dali de dentro. Bateu na porta e ouviu uma voz rouca lá de dentro: - Pode entrar. - Carlos entrou e viu que estava num tipo de sala de espera. Mais iluminada. Uma janela que dava para a rua dos fundos da igreja. Foi até a janela e respirou fundo o ar poluído de lixo. Olhou para baixo e viu os latões.
- Bom dia. - A voz rouca e feminina assustou Carlos. - Desculpe-me se te assustei. Meu nome é Sandra, secretária do reverendo. Ele já vai atendê-lo. Veio para a vaga de teólogo, não?
- Sim. Mas não trouxe nenhum documento. Ia passando pela porta da igreja e vi o anúncio. Então resolvi pegar mais informação.
- Ah, entendo. Não tem problema, o reverendo te explicará tudo. Aceita um café? Não? Água? Não? OK, pode se sentar, o reverendo está terminando seu devocional.
Devocional. Carlos lembrou dos dias de seminário de teologia. Não sabia que ainda reverendos cultivavam devocionais. O telefone tocou, Sandra atendeu e depois de algumas palavras desligou. Virou-se para Carlos e disse: - Pode entrar, o reverendo o aguarda.
- Obrigado.
O reverendo era um sujeito alto e gordo. Cabelos grisalhos, bigodes grisalhos. Os grisalhos não lhe concediam mais idade, mas lhe davam um certo charme de meia idade. Vestia um terno sem o paletó. Ele estava de pé atrás de uma grande mesa de madeira e na frente de uma grande estante repleta de livros. O olhar do reverendo revelava muita leitura. Sua testa vincada revelava muita meditação. Carlos pensou por um instante que aquela igreja não precisava de um teólogo, pois aquele sujeito esbanjava sabedoria e saúde.
- Bom dia, reverendo, meu nome é Carlos e...
Sem deixá-lo terminar a apresentação, o reverendo emendou: - Bom dia, Carlos. Seja bem-vindo! Viu a placa lá na entrada e deve ter estranhado, não?
Carlos meditou uns instantes e percebeu que não adiantava dissimular. - Sim, reverendo, para ser sincero...
Novamente o reverendo o interrompeu. - Sem formalidades, Carlos. Me chame de Luiz.
- Ah, sim. Bem, Luiz, para ser sincero nunca vi numa igreja uma oferta de trabalho para teólogo. E vendo agora sua sala, parece que o senhor, quer dizer, você é um estudioso.
- Sim. E daí você concluiu que uma vaga para teólogo seria contraditória?
- Bem, não quis ofendê-lo, mas...
- Não, Carlos, você não me ofendeu. Não sou o tipo de homem frágil que se ofende. Apenas deduzi o que você deduziu. Mas, sim, precisamos de um teólogo. Não desses teólogos idiotas que os seminários nos mandam. Mas precisamos de um teólogo corajoso, com opinião. Entende? Temos uma porção de teólogos na igreja que fazem o mais do mesmo. Precisamos de um sujeito ousado. Você tem ousadia, Carlos?
Carlos não esperava aquela pergunta e não sabia como respondê-la. Ficou em silêncio e esperou uma nova interrupção do reverendo. Dessa vez, Luiz apenas fuzilava Carlos com seus olhos azuis. E só agora, Carlos percebera que os olhos eram azuis. Então, Carlos teve que falar.
- Bem. Não sei que tipo de ousadia vocês procuram. - Carlos encontrou uma resposta satisfatória, pois não o comprometia.
- Ousadia de ofender as pessoas.
- Ofender as pessoas?
- Sim. Nossa igreja está repleta de teólogos que massageiam egos, que são extremamente tolerantes. Precisamos de um contraponto, entende, Carlos? Precisamos do contraditório!
A voz do reverendo agora alcançava notas mais altas e graves.
- Entende agora por que colocamos uma placa? Colocamos uma placa de oferta de emprego para que alguém de fora venha e não nos mandem os mesmos tolos de seminários. Teólogos treinados para manterem o estado de coisas. Olha, Carlos, eu também já fui como esses jovens idiotas teólogos, mas me cansei. Ser igual é cansativo. Ser o mesmo é o verdadeiro e único inferno.
- Sim, entendo. Mas você não é o reverendo? Já não faz o contraponto? Por que precisa de mais um?
- Ah, finalmente você chegou à questão. Veja bem, Carlos. Faremos uma dupla. Dissimularemos. Provocaremos. Vamos começar entre nós. Eu afirmo isso e você afirmará o não-isso. Chegaremos a exaustão da discussão. Os teólogos idiotas tomarão partido por mim ou por você, entende? Dividiremos. Sacudiremos. Os corações precisam ser sacudidos, As mentes precisam estar revoltas em si mesmas. Você está entendendo, Carlos?
- Sim, Luiz, sim. Levaremos todos eles, toda a igreja à exaustão de si mesmos!
- Isso, Bravo!
- E ao alcançarem a exaustão extrema provarão a cruz. Provarão o sangue escorrendo pela boca. As veias dilatadas. As mãos e os pés sangrando. E dirão: “onde erramos, Senhor?”
- Isso, Carlos, você realmente entende! A exaustão exacerbada do corpo alcança o espírito! E precisamos alcançar o espírito para que esses idiotas acordem!
- Sim, entendo, Luiz! Quero a vaga. Essa vaga é minha.
- Sim, é sua, Carlos. Não aguentava mais te esperar.