AS FLORES-DO-CAMPO
AS FLORES-DO-CAMPO
A cama era muito mais do que um lugar onde deitava o cansaço do corpo. Era a possibilidade de uma desistência da vida. Talvez a encerrasse debaixo das pálpebras. Eternizando a noite. E as cortinas das manhãs não se abrissem jamais.
Que era isso? Um estado depressivo? O doutor Juvêncio dissera que sim. Mas Edimaura não acreditava nisso.
De onde viera. Lá do meio do sertão de Serra Formosa. Da roça de milho. De feijão. De mandioca e abóbora. Isso era preguiça. Vagabundagem.
Seu pai não perdoava. Quando Edimaura sentia esse cansaço devorando seus músculos. Apoiava os braços no cabo da enxada.
Com olhos de lince, Antero vociferava: “Tá dando de mamá ao cabo da enxada? Quenga dos inferno! Num trabaia. Num come!”
Edimaura se agarrava à semivida. Suportava a dor que passeava pelo corpo inteiro. Dor solitária. Nada podia ser pior que aquilo.
Cansaço de olhar para baixo. Olhar para a terra. Era só levantar os olhos que o pai já endireitava sua cabeça com um torrão de barro certeiro.
Nem sabia que cor era o céu. Imaginava que havia uma plantação de algodão dançando. Lentamente num teto azul.
Sabia mais do verde e do marrom. Sabia das pedras. Dos tocos de raízes. Das cobras, Jararaca e Cascavel. Urutu-Cruzeiro e Coral.
Edimaura nada sabia de estrelas. Nem da lua. A noite era escura demais e a engolia feito Sucuri.
O caminho de volta para a casa, entre as araucárias, era um perigo só. Tinha que olhar bem onde pisava.
A mãe esperava pai e filhos para a janta. Geralmente uma caça. Paca. Porco-do-Mato. Tucano. Veado. Cateto.
As raposas se fartavam das galinhas. Disputavam com os gambás. E com as jaguatiricas. Os carneiros eram comidos pelas onças. E nem os cavalos se livravam dos predadores.
Então essa era uma tristeza. Uma vida de agonia. Não uma doença. Uma construção difícil de implodir. Edimaura se jurara de morte. Bem depois do que acontecera. Entre ela e Genivaldo.
Achava que estava perdidamente apaixonada. Nunca recebera flores. E lá vinha aquele moço alto de olhar meloso. Carregando flores-do-campo. E eram para ela. Se isso era o céu, ela estava nas nuvens.
Fazia de tudo para manter uma relação. Que havia acabado há tempos. Edimaura, não se dava conta disso. Na verdade não queria ver que estava caindo num abismo. Manteve os olhos fechados. Até aquele momento.
Passara das mãos calejadas de Antero. Para os braços fortes de Genivaldo. Suas mãos tinham a violência nas palmas. O ódio e o desprezo nos dedos. Na boca a voz de Genivaldo era a mais alta possível. Na garganta as palavras berravam insultos e palavrões. Edimaura achava que merecia tudo aquilo. Não aprendera a ser boa filha. O companheiro teria que ensiná-la a ser boa esposa.
As cenas da infância passavam uma a uma. Num ritmo frenético.
Vez por outra a figura do pai trocava de rosto. E a face contraída e rústica se transformava no semblante de Genivaldo. Edimaura estava confusa. Não conseguia manter vivo sentimento algum. No lugar da enxada apareciam as flores-do-campo. Mas quem as entregavam eram pessoas desconhecidas.
Os campos da roça. Os brados de Antero. A fome comendo o estômago. Os murros de Genivaldo socando as vísceras.
Naquele relacionamento abusivo. Dava a vida para dar certo.
Pela primeira vez percebera as batidas do seu coração. E ele não batia na mesma frequência das imagens.
Pouco a pouco a culpa por não amar do jeito certo foi escoando pelas narinas dilatadas.
Ali naquela cama, Edimaura percebeu que estava tudo errado.
E deu a vida mesmo assim.
Mírian Cerqueira Leite