Lá é que podem com gente assim
Ia e vinha na sua busca insana de criação. Fracasso, sucesso, revisão, corte, adição, mais corte, modificações... Porém, um certo dia, nem mais tentar ele tentou. Não que fosse de próprio desejo, mas algo aconteceu que o cercou de dentro, de repente, e impediu que sequer ensaiasse uma linha. Nunca mais escreveu.
Não escreveu, mas o peito continuava ardendo, e os milhões de personagens e lugares continuavam desfilando por aquela mente, sem poder existir sob forma literária. Nem carta escrevia. Nada. Se conversava, só fazia ironizar e fugir de qualquer assunto sério. Um não-sei-que. Mas o miolo da consciência estava alerta e assistia àquela queda progressiva. Mas não tomava parte nem movia uma palha. O peito tinha por cima um peso - e que!- e sentia-se enterrado sem ter morrido. Que aflição e falta de ar!
Começou a andar de noite. Sonâmbulo. Ou a cama era um barco se afundando com ele dentro ou tinham-no prendido num quarto escuro, sem portas e janelas, só esperando que morresse sufocado. Doutras vezes, chefes irados e já quase esquecidos vinham cobrar tarefas não cumpridas nos estúpidos empregos anteriores. E acordava sempre tentando escapar de que perigo fosse. Os amigos de infância e adolescência vinham atormentá-lo toda madrugada, chamando-o ingrato ou insultando com velhos apelidos. As antigas namoradas apareciam culpando-o de marcas em seus corpos ou exibindo cartas infames que ele, sem nunca se lembrar de ter escrito, tinha, todavia, assinado. Os velhos e os mortos acusavam-no de passados pecados e se aglomeravam à volta de sua cama, rezando a ladainha desesperada pela sua salvação:
- Porta do Céu! Torre de David! Torre de Marfim! Saúde dos Enfermos...
E se retiravam descrentes de que pudessem conseguir-lhe o perdão. Mas Deus, tudo podendo...
Acordar chorando e ensopado de suor passou a ser coisa comum. Não lia. Uma apatia tomou conta inteiramente dele, e o mundo lá de fora, por assim dizer, passou a não existir. Às vezes, uma que outra magra linha escapava daquela pena emperrada. Aí melhorava sensivelmente. Porém, como não pudesse continuar, assaltavam-no de novo os delírios. E cada vez piores e mais frequentes.
Sim, delírio também, nem só sonambulismo. Passou a representar na rua, na loja, no jardim à noite, em frente aos namorados. Um dia beijou Rita Romana, a Beata, à força, chamando-a de meu bem, minha Julieta, minha joia do arco-íris. Foi preso. Fichado como anormal, vale dizer, como tarado. Mas o que poderiam fazer com o doido? Bem verdade que não deixaram de dar-lhe uma surrazinha, exemplando. Mas foi solto logo.
Mas o mesmo não aconteceu mais tarde, quando ficou nuzinho em pelo no Largo da Matriz, no domingo de encerramento das barraquinhas da padroeira, em pose de Apolo e tal se declarando. Dez da manhã, a praça cheia, insanidade patente, moral pública incomodada... Meteram-no no primeiro ônibus para Belo Horizonte, depois para Barbacena, para o Colônia, com escolta e guia de internamento, que lá é que podem com coisas assim.
(Jeddah, Arábia Saudita, mar/1976)