Calma, muita calma...

O carro ia vagarosamente pelo acostamento, ou o que deveria ser o acostamento. Nélio dirigia, vendo as árvores roçarem a janela, aturdido tentava pensar, acalmar-se, mas não havia calma. Finalmente o carro freou, e logo que isso se deu, uma cigarra começou seu canto agonizante e infinito, e foi nesse momento que o sol despontou por detrás das nuvens, cegando o motorista. Automaticamente, devido à náusea que o sol lhe provocava naquela ressaca matinal, Nélio ergueu a cabeça, e tentou fazer aba com as mãos, para em vão proteger-se do sol carrasco. Mas logo baixou a cabeça, e não porque o sol lhe turvasse mais as idéias; viu o sangue salpicado no vidro do carro, acumulado nos para-brisas, com gotas espessas caindo por toda sua extensão. Ah, e lentamente. Que lentidão! Sentiu vontade de vomitar, e impetuosamente, como alguém que vê um assassino correndo com uma arma de fogo em sua direção, sem nenhum planejamento prévio, saiu do carro antes que calculasse que passava fraco demais para ter se levantado tão depressa. O sol queimava, queimava mesmo, sim, isso era real, o sol, refletia, quase encantado, era impossível estar encantado naquela manhã. Nélio colocou a mão direita no peito, como alguém que vai cantar uma serenata, e olhou para o outro lado da estrada. O capinzal amarelecido deitava com o vento, revelando uma planície sem horizonte visível. Diria: cabelos louros rebelando-se na campina selvagem, qualquer poeta de merda, em qualquer poesia de merda, na merda do século passado. Ora! Era apenas: Terra. Terra firme e plana, tomada por mato, simplesmente mato. Uma espaço invadido por ervas daninhas. Quantas cobras e ratos haveriam ali? Parecia muito bonito de longe. Isso explicava tudo. Até a arte, definindo as margens, marcando onde inicia o seu simbolismo e onde se encerram seus axiomas.

Aqui, um cartão-postal, lá, uma manjedoura de pestes.

Refletia sobre isso, de mão no peito, ainda conservando a pose de seresteiro. Eis que um ronco de motor de súbito chegou aos ouvidos de Nélio, e logo suas retinas foram assaltadas pela imagem de um caminhão em movimento, aproximando-se. No sentido contrário. Não pensou em mais nada, acocorou-se ao lado do carro, segurando-se com a mão direita na roda dianteira do lado do motorista- que nesse caso era ele mesmo- e vomitou. A poeira subiu e, depois de alguns minutos -

menos que dois e mais do que três-assentou; a cigarra deixou de cantar. O sol sumiu e colocou-se novamente por detrás da nuvens, e foi depois somente disso que Nélio levantou.

Acordou? Não dormia.

O que fazia?

Por favor, esses estultos infelizes que empenham-se entender os bêbados, que corajosamente avancem um degrau e encarem o desafio de entender um homem de ressaca.

Estava para entrar no carro de novo quando ouviu o som de um motor, que agudava, peidorrava, vindo da mesma direção de onde havia saído. Com pressa entrou no carro, fechou a porta e esperou. Olhou para o lado esquerdo da estrada. Agora o mato-podre-louro parecia empedernido na campina, e uma vez que não havia sol, como já narrado, Nélio sabia que era o fim de alguma coisa. Pelo retrovisor viu que era uma moto. Abriu a janela do carona e esperou, ainda olhando para a estrada, esperando. Esperar era o que sobrava sempre. Sempre um homem acaba esperando. O inferno e o céu devem ter filas enormes, filas para as filas. Um homem sempre tem de entrar numa porra de uma fila, para ser um herói, um mártir, o nome de uma rua...

A moto- era vermelha- parou numa derrapada. Havia só um homem.

- Qual é patrão, vai vazar?

- Escute, por favor... - chorando dizia Nélio, tanto era o pavor.

- Escute é a minha pica, seu vagabundo. Quanto vão pagar?

Nélio calou-se. Era só um motorista. Não era um homem, um herói, um mártir, um Beatle. Só um motorista fodido de ressaca.

- Foi sem querer, eu juro...

O homem na moto sacou um 38. E claro, adivinhem, a conversa ficou um pouco mais séria.

- Pilantra do caralho. Mata minha sobrinha atropelada e sai. E fica por essa?

Calma, muita calma. Não era situação para se brincar. A cigarra recomeçou a cantiga. Havia uma espécie de tédio naquela situação, por desesperadora que fosse. Não era aventureiro ter um homem com um revólver apontado para sua cabeça numa estrada de terra, em sabe se lá que lugar do Paraná, numa tarde escura.

- Ouviu, filho da puta?

- Ouvi.

E como o homem da moto atirou no pneu dianteiro do lado direito- o do lado em que estava, do lado do carona- e Nélio sentiu o pneu baixar, e o carro declinar, apressou-se em dizer:

- Tenho dois mil.

- Em dinheiro?

- Em dinheiro.

- Parece pouco. Um pouco menos do que o exato. Você atropelou uma criança, não prestou socorro e fugiu. Pouco me importa se é um fodido. Mas acho que é pouco.

PLINK. Mais um tiro no retrovisor.

Nélio abriu o porta-luvas e tirou um smartphone dourado. Os olhos do homem fulguraram, e Nélio, o motorista, não via. Pois é, o cara usava capacete.

- Dois mil e esse celular, por favor.

A cigarra cessou, e o sol mortiço e vermelho, típico de tardes tristes de verão reapareceu, como que pra zombar.

- Toma aqui.

Nélio deu o aparelho e o dinheiro e o homem foi embora. Depois deu partida no carro e seguiu viagem.

Apesar do pneu furado conseguiu chegar num posto de gasolina. Parou para tomar um café. A noite caía, e analisando as nuvens e seus movimentos e dimensões, era possível dizer que choveria dentro de uma hora, para se dizer o mínimo.

Logo que parou no posto, antes de sair do carro- para além de trocar o pneu, abastecer, mijar, lavar o rosto e beber café,- cutucou Junior no banco de trás.

- Escute, Junior. Nunca mais pegue o carro. Eu trabalho para o seu pai. Se ele soubesse que eu deixei você dirigir hoje e...

Embora gritasse essas palavras, Nélio, percebeu que o menino nada ouvia. Dormia profundamente. Guiou o carro próximo de uma bomba, pediu que completassem, mais os serviços da borracharia e saiu.

Foi ao banheiro, e enquanto urinava leu na parede, escrito à caneta:

" Os bons sempre desistem". E mais uns números de prostitutas e bichas. Foi até a conveniência e pagou pelo combustível. Quando saía de lá, dois jovens numa picape lhe interpelaram, um deles perguntou:

- Hey, bicho, quer tomar uma gelada com a gente?

Dizia isso levantando uma grade de cervejas pela metade numa mão. Pareciam geladíssimas.

- Não, obrigado, rapazes- foi a resposta. Que resposta foi essa?

É que Junior, o filho do patrão tinha vestibular logo cedo, no dia seguinte. E já era noite. Teve de esperar alguns minutos pela troca do pneu. Logo estava de volta ali, dirigindo à noite, em estradas escuras.

Era noite estrelada, como que um sarcasmo ofensivamente atacante contraposto ao dia acontecido. Enquanto dirigia, Nélio reparou que havia esquecido do sangue no vidro dianteiro. Não pingava mais dos para-brisas. Era uma espuma vermelha escura.

Se tentasse lavar o carro na mansão do patrão, com a vap da garagem, alguém notaria. Coçou a cabeça. Caso não encontrasse um lava-jato 24 horas na cidade, haveria de explicar o sangue no carro. Laboriosamente. Nada tão trabalhoso o quanto explicar, o que quer que seja, pensava ele, dirigindo pelas ruas asfaltadas e bonitas, perto da casa do patrão, com um pouquinho de nojo da vida.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 10/07/2017
Reeditado em 11/07/2017
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