BRINCANDO DE DEUS
JB Xavier
A reunião terminou e eu fiquei sozinho, na cabeceira da grande mesa. Encerrara-se o último dos encontros onde decidimos pela ampliação de nossas atividades no México.
Como Presidente da companhia, eu substituíra o fundador, há alguns anos, por ocasião de sua morte, e, tal como ele me ensinara, eu adquirira o hábito de visitar nossos escritórios ao redor do mundo pelo menos uma vez a cada dois anos.
Eu havia chegado há dois dias da matriz, na Holanda, exatamente para avaliar os planos de investimentos da filial latino americana, e ainda não havia desfrutado de um momento sequer de verdadeira tranqüilidade. Por isso, tentei inalar o silêncio que reinava na sala vazia.
O sucesso do encontro me trouxera tranqüilidade e paz... Não apenas pelos bons resultados obtidos por esta Divisão da empresa, que um dia já comandei, mas pelo que fiz por um dos nossos jovens executivos.
Após o burburinho da reunião, as palavras inflamadas desse jovem ainda ressoavam em meus ouvidos. Ele fora recentemente empossado como Diretor Geral da Operação Mexicana, e saiu cabisbaixo da reunião, após ter ouvido o que eu lhe disse. Envergonhado, eu diria. Mas, como Presidente, eu não poderia deixar que um jovem brilhante como ele, seguisse pela vida com os conceitos que expusera diante de todos. Não que estivessem errados, ao contrário, eram quase todos de senso comum, mas eu precisava lhe mostrar alternativas, como fizeram comigo, há muitos anos, quando eu tinha a sua idade.
Foi de uma reunião como essa que saí com uma das maiores lições de minha vida.
Esse jovem brilhante, argumentava que a instabilidade na Argentina e no Uruguai, a inviabilidade da Colômbia, e a falta de confiança que inspirava a Venezuela deixavam o México praticamente como a única opção de investimento, no continente, fora do Brasil, onde se situava nossa filial latino-americana. E ele estava certo quanto a isso! O problema residia na maneira pela qual ele pretendia dirigir as operações mexicanas.
E assim, no silêncio da sala vazia, olhando através dos vidros dos grandes janelões, pude ver o oceano de prédios da Grande São Paulo, estendendo-se até onde a vista podia alcançar. Vivendo no exterior há tantos anos, era um prazer para a alma avistar paisagens tão conhecidas e que eram parte da história da minha vida.
Meu pensamento voou para décadas no passado, quando ainda éramos o maior fabricante do mundo apenas de máquinas e equipamentos de grande porte para a agricultura.
Hoje nossas atividades vão do mercado financeiro à construção de navios, de montadores de veículos especiais a entretenimento, e nossas operações tornaram-se tão complexas que muito mais facilmente que outrora, tendemos a embaralhar nossa escala de valores e comprometer nossa capacidade de julgamento, ao sermos tentados a pensar que não são mais as pessoas, e sim as coisas, os agentes de transformação.
Esse jovem afoito ao qual eu acabara de sacudir os ombros, era um especialista em marketing industrial, com um histórico irrepreensível de sucesso em seus outros empregos. Exatamente como eu, quando entrei na companhia.
Lembro-me de que o dia de meu ingresso na empresa foi muito especial para mim. Por dois motivos: O primeiro é que eu seria apresentado ao alto corpo administrativo como o novo Diretor Geral para a América Latina. Nada mau para um garoto pobre, que um dia sonhara apenas em conhecer a capital do Estado em que nascera! O segundo, eu ainda sequer sabia da existência, mas veio a ser ainda mais importante que o primeiro!
Contudo, minha contratação não fora nada fácil. Eu, e todos os que competiram comigo, fomos submetidos durante meses a uma estafante maratona de entrevistas e testes, nos quais foram reprovados alguns dos mais renomados profissionais que eu conhecia.
Tal como esse jovem executivo, eu tinha também certo renome, principalmente por minha passagem pela última empresa onde atuei. Adepto dos resultados rápidos a qualquer custo, eu os perseguia afoitamente, não me importando com o destino de quantos estivessem em meu caminho. Para mim bastava apenas que minhas ações estivessem dentro da lei.
Eu estava felicíssimo por ter sido o escolhido, até porque na faculdade de administração que eu cursara, muitas vezes tínhamos estudado a biografia do fundador da companhia, um pitoresco octogenário recluso, considerado uma lenda viva no mundo dos negócios, e que raramente era visto em público. Além disso, eu acompanhava todos os artigos que podia encontrar sobre ele, e, claro, seu livro “Não Fale, Demonstre!”, além de monumental best seller era também meu livro de cabeceira.
Durante a fase final do processo de seleção que me escolheu, por duas vezes visitei a matriz, na Holanda, e, embora tendo sido entrevistado várias vezes por muitos dos vice-presidentes seniores, fui recebido muito rapidamente pelo “Poderoso Chefão”. Tão rapidamente, que mal tive tempo de perceber que estava, finalmente, diante do homem reconhecido mundialmente como um ícone da administração.
Informaram-me na ocasião, que ele havia aprovado pessoalmente meu ingresso na empresa, porque considerava a América Latina uma região estratégica na composição geográfica da companhia.
Confesso que não fiquei muito impressionado com aquele homenzinho franzino, de aparência frágil e olhar penetrante. Ele era muito diferente das fotos suas que eu já havia visto. Eu o imaginara um holandês severo e crítico, porque, raciocinava eu, ninguém construía uma companhia do tamanho da sua, usando a docilidade como ferramenta. Eu estava redondamente enganado, como logo descobriria.
Na reunião de apresentação, sentaram-me ao seu lado esquerdo. No seu lado direito, sentara-se o Vice-Presidente de Operações Para os Países em Desenvolvimento. Este era um jovem executivo, apenas alguns anos mais velho que eu, com cujas idéias a respeito de administração eu me afinara instantaneamente. Tal como ele, eu achava que os fins justificavam os meios.
Como eu, ele estava na companhia há pouco tempo. Considerado um prodígio das finanças, ele fora trazido para a empresa a peso de ouro, “roubado” de um dos maiores bancos da Europa.
O que mais me atraía nesse jovem executivo era a sua objetividade e franqueza. Sem meias palavras, ele costumava ir direto ao ponto central da conversa e sua agudez de raciocínio, habilmente utilizada, costumava confundir seus interlocutores menos avisados.
Ao tempo em que circulei pela matriz, durante o processo de seleção, ouvi pelos corredores alguns comentários depreciativos sobre sua pessoa. Comentavam que ele era desagregador, que estava influenciando o poderoso chefão com suas idéias ousadas etc. e aquilo que eu considerava espontaneidade, era visto por muitos como insensibilidade.
A verdade é que todos pareciam surpresos, e alguns até irritados, pela desenvoltura com que ele circulava entre seus pares, na alta administração. Diziam que o “velho” – como era também conhecido o poderoso chefão – estava amolecendo e deixando esse “garoto” recém chegado à vontade demais.
Naturalmente, passei ao largo desse zum-zum-zum, porque,afinal, era ele que indicaria os candidatos que iriam para a triagem final, feita pessoalmente pelo chefão. Agi corretamente, porque ele não só me incluiu entre os pré-selecionados, como fez um relatório positivo a meu respeito. Quando o “Velho” me escolheu, ele passou a intitular-se meu “tutor”.
Ocorre que há homens sábios – pouquíssimos, é bom que se diga – que sabem exatamente o que estão fazendo quando nós, os mortais comuns, lhes dirigimos críticas, por não alcançarmos a abrangência de sua compreensão. Explico:
Durante a reunião onde fui apresentado como o mais novo membro da empresa a ter acento na Diretoria, meu jovem “tutor” deu início a uma explanação da situação da empresa na América Latina:
O mercado - disse ele, num rápido discurso - vai de vento em popa. Os ventos estão a favor e precisamos aproveitar o momento. Por isso, decidimos ampliar nossa produção na América Latina. Para isso, estamos unificando as decisões no continente, e acabamos de contratar o profissional que deverá responder pelos resultados naquela região.
Todos o ouviam com muita atenção, porque a América Latina, era,como eu já sabia, muito importante nos planos estratégicos da companhia.
Assim, todos os olhares se voltaram para mim, enquanto me saudavam com ruidosas palmas. Depois que os aplausos cessaram, meu “tutor” continuou:
Os recursos para o investimento necessário à modernização de nossas instalações latino-americanas serão alocados a partir de uma reforma administrativa que será levada a efeito pelo novo Diretor Geral. Já analisei pormenorizadamente a situação econômica da empresa, e elaborei um plano de “reciclagem financeira”: Poderemos ganhar um bom dinheiro apenas nos aproveitando das brechas das leis daqueles países, além, é claro, de utilizarmos a nosso favor os altos índices inflacionários existentes na região.
O homem era um expert em finanças, de maneira que ninguém ousou tecer comentários aos seus argumentos.
Enquanto ele falava, uma exuberante apresentação desenrolava-se no telão à nossa frente. Gráficos e demonstrativos ilustravam minuciosamente as explanações-
Escolhemos um profissional experiente em ações de reestruturação - continuou ele - Eu lhe passei um plano básico de ação, que, obviamente será por ele detalhado antes de ser colocado em prática. Em linhas gerais, ficou claro para mim que nossa estrutura latino-americana terá que ser drasticamente otimizada, quer quanto à logística, quer quanto ao efetivo humano. De fato, segundo meus dados, estamos bastante “inchados” por lá.
Ele fez uma pausa e tomou um gole de água. Depois continuou:
Penso que dos 15.000 funcionários que temos lá atualmente, pelo menos 40% deles serão dispensados. Com isso, estimo que economizaremos algo em torno de 40 milhões anuais. Ao mesmo tempo, centralizaremos a propaganda, o treinamento e o atendimento ao cliente, o que nos dará uma economia de aproximadamente 8 milhões. Além disso, temos que rever também muitos dos benefícios que damos além do razoável. Refiro-me ao que chamamos de “investimentos sociais” - doações, financiamentos de creches para os filhos dos funcionários, cooperativas de consumo etc. Esses benefícios consomem anualmente mais de 3 milhões. Estes custos serão igualmente re-equacionados. Não há na região, segundo minhas informações, nenhuma outra empresa que ofereça tantos benefícios quanto a nossa, de maneira que não haverá parâmetros para comparações por parte dos sindicatos, quando deixarmos de oferecê-los. Além disso, a lentidão da Justiça desses países nos favorecerão, na medida em que não teremos que desembolsar imediatamente as indenizações trabalhistas, inevitáveis em reestruturações desse porte.
Nova pausa e novo gole de água.
Senhores – disse ele enquanto sentava-se – estas são, em linha gerais, as ações que deverão gerar os recursos para a alavancagem de nossa produção no continente sul americano.
Um murmúrio surgiu entre todos os presentes, sem que eu pudesse determinar se era ou não de aprovação. Quanto a mim, eu achei o plano brilhante, mesmo porque eu já o havia discutido com ele, nos dias que antecederam a reunião. Ansioso, eu não via a hora de pôr mãos à obra e reconstruir a empresa naquela parte do mundo.
Graças a Deus não teci nenhum comentário no momento, permanecendo calado, até que o Poderoso Chefão ergueu a mão, pedindo silêncio. O que se seguiu então, foi uma das cenas mais constrangedoras que já tive o desprazer de vivenciar.
Quando o silêncio se fez, o “velho” respirou profundamente, levantou-se, e apoiando os punhos sobre a mesa, dirigiu-se ao meu “tutor”, dizendo:
Queira retirar-se desta sala. O senhor está demitido!
Nenhum poder de verbalização pode descrever a estupefação que se via nos rostos de todos. Eu, em particular estava chocado. Afinal eu ajudara a elaborar o plano, e fornecera valiosas informações para viabilizá-lo!
Mas, ainda mais impressionante, era a palidez que desceu sobre o rosto do jovem executivo. Ele ficou ali sentado, olhando para o “velho” como se estivesse em transe. O silêncio era mortal e a ansiedade que se abatera sobre todos parecia ter cessado o fluir do próprio tempo! Eu já não sabia mais se haviam se passado segundos ou minutos, até que ouvi a voz do chefão, geralmente calma, ricochetear pelas paredes, quase gritando:
FORA!! Aguarde na sala ao lado para que possamos abreviar a rescisão de seu contrato de trabalho!
E como meu “tutor” não se moveu, a voz do “velho” soou novamente, inapelável:
FORA!
O silêncio era brutal, e enquanto todos nós tentávamos compreender o que tinha acontecido, o Poderso Chefão saiu da sala dizendo:
Volto em seguida para continuarmos a reunião!
Quando ele se foi, a ala jovem dos presentes – eu entre eles - nos levantamos e fomos até onde estava o jovem demitido, que, debruçado sobre os papéis de nosso plano, mantinha a cabeça baixa e o olhar distante, parecendo anestesiado. Tentamos consolá-lo da melhor maneira, enquanto alguns diretores mais antigos na casa, mantinham-se em seus lugares, com um sorriso aparentemente hipócrita nos lábios. Mas esse era o dia das grandes lições, e eu iria me arrepender desse pré-julgamento mais cedo do que supunha!
Ainda estávamos ladeando o infeliz, quando o Poderoso Chefão entrou novamente na sala e retomou seu lugar à mesa.
Só então meu ex-tutor pareceu dar sinais de vida, e perfilando-se na cadeira, começou a recolher os papéis espalhados sobre a mesa. Tinha os olhos marejados, num esforço baldado para conter a emoção. Confesso que eu também estava emocionado e me perguntando se tudo o que eu lera sobre esse homem para quem eu trabalharia, era verdade.
Quando o executivo levantou-se, finalmente, parecia uma sombra do homem que tão confiantemente discorrera sobre nosso “brilhante” plano de trabalho. Era um ser patético, com o olhar sem foco e o rosto sem expressão. Então a voz do “velho” soou novamente, num comando suave, porém que não admitia réplicas:
Sente-se!
Como um autômato, meu “tutor” obedeceu ao comando imediatamente, parecendo ainda sedado pela inesperada demissão.
Agora você sabe como é ser demitido sem que tenha feito por merecer. Sua demissão durou apenas cinco minutos, mas espero que eles tenham servido para fazê-lo repensar suas atitudes a respeito de pessoas. Ser demitido sem motivo não é somente humilhante, é também uma traição da empresa para com o empregado. Se você acha que passei dos limites, fique á vontade para demitir-se, porém se o fizer, demonstrará que não aprendeu nada, e eu terei apenas que lamentar por seu futuro! Se permanecer conosco dará uma demonstração pública de humildade, condição indispensável a todo bom comandante.
Enquanto olhávamos atônitos para o poderoso chefão, os diretores antigos sorriam abertamente, certamente por conhecerem os seus métodos, ou, talvez, por já terem sido, algum dia, submetidos ao mesmo tratamento.
O “velho” continuou:
É fácil despedir 6.000 pessoas sem ter que olhar nos seus olhos. Difícil é explicar às suas esposas e filhos que meia dúzia de "notáveis" se reuniram no outro lado do mundo e decidiram seu destino sem lhes prestar a mínima atenção. E pior! tendo tantos caminhos alternativos a seguir. Se decidir ficar conosco – continuou o chefão – tenha em mente que demissões deve ser sempre o último desses caminhos.
Meu “tutor”, antes tão senhor de si, permanecia tentando segurar as lágrimas, diante do que ouvia. O “velho” continuou:
Não me considere um hipócrita, porque fabrico máquinas que tiram o emprego de muitas pessoas. Ao fabricá-las, dou emprego a muitas outras. Sou um industrial, não um humanista, mas isso não me dá o direito de condenar pessoas ao desamparo, sem necessidade. Nossa sobrevivência não está em risco, e nossa lucratividade geral é boa. Portanto, a ampliação de nossas atividades na América Latina deveria ser motivo de festa, não de tristeza. Pretendemos crescer, e para isso temos que construir, não destruir.
E, se outra razão não houvesse para se contrapor às demissões, pense nos valores que a empresa já investiu no desenvolvimento desse pessoal, e deduza-os de suas projeções de economia.
Isto dizendo, o “velho” encerrou o discurso, dirigindo-se a mim:
Assuma seu cargo na América Latina e ambiente-se na companhia. Pense no que eu disse, porque dentro de três meses nos reuniremos novamente para traçarmos um novo plano de ação para aquela região. E por favor, não se esqueça de que os fins não justificam os meios, os meios é que justificam os fins! Lembrando-se disso você nunca será tentado a brincar de Deus!
Se sou hoje o Presidente Mundial da companhia, talvez tenha sido por nunca ter me esquecido desse conselho.
Amanhã começarei minhas visitas a todas as nossas fábricas no continente. Provavelmente em cada uma delas encontrarei diretores que gostam de brincar de Deus. Tentarei salvar suas carreiras profissionais, informando-lhes, ainda que de maneira cruel, que eles são apenas humanos, e, como tais, falhos!
O ruído do helicóptero que veio me buscar tirou-me do devaneio, mas antes de levantar-me fiquei olhando para a cadeira vazia do jovem executivo a quem ministrei o mesmo tratamento de choque. Ele precisava descobrir que existe uma linha divisória entre a legalidade e a ética, que apesar de tênue, não pode ser esquecida.
JB Xavier
A reunião terminou e eu fiquei sozinho, na cabeceira da grande mesa. Encerrara-se o último dos encontros onde decidimos pela ampliação de nossas atividades no México.
Como Presidente da companhia, eu substituíra o fundador, há alguns anos, por ocasião de sua morte, e, tal como ele me ensinara, eu adquirira o hábito de visitar nossos escritórios ao redor do mundo pelo menos uma vez a cada dois anos.
Eu havia chegado há dois dias da matriz, na Holanda, exatamente para avaliar os planos de investimentos da filial latino americana, e ainda não havia desfrutado de um momento sequer de verdadeira tranqüilidade. Por isso, tentei inalar o silêncio que reinava na sala vazia.
O sucesso do encontro me trouxera tranqüilidade e paz... Não apenas pelos bons resultados obtidos por esta Divisão da empresa, que um dia já comandei, mas pelo que fiz por um dos nossos jovens executivos.
Após o burburinho da reunião, as palavras inflamadas desse jovem ainda ressoavam em meus ouvidos. Ele fora recentemente empossado como Diretor Geral da Operação Mexicana, e saiu cabisbaixo da reunião, após ter ouvido o que eu lhe disse. Envergonhado, eu diria. Mas, como Presidente, eu não poderia deixar que um jovem brilhante como ele, seguisse pela vida com os conceitos que expusera diante de todos. Não que estivessem errados, ao contrário, eram quase todos de senso comum, mas eu precisava lhe mostrar alternativas, como fizeram comigo, há muitos anos, quando eu tinha a sua idade.
Foi de uma reunião como essa que saí com uma das maiores lições de minha vida.
Esse jovem brilhante, argumentava que a instabilidade na Argentina e no Uruguai, a inviabilidade da Colômbia, e a falta de confiança que inspirava a Venezuela deixavam o México praticamente como a única opção de investimento, no continente, fora do Brasil, onde se situava nossa filial latino-americana. E ele estava certo quanto a isso! O problema residia na maneira pela qual ele pretendia dirigir as operações mexicanas.
E assim, no silêncio da sala vazia, olhando através dos vidros dos grandes janelões, pude ver o oceano de prédios da Grande São Paulo, estendendo-se até onde a vista podia alcançar. Vivendo no exterior há tantos anos, era um prazer para a alma avistar paisagens tão conhecidas e que eram parte da história da minha vida.
Meu pensamento voou para décadas no passado, quando ainda éramos o maior fabricante do mundo apenas de máquinas e equipamentos de grande porte para a agricultura.
Hoje nossas atividades vão do mercado financeiro à construção de navios, de montadores de veículos especiais a entretenimento, e nossas operações tornaram-se tão complexas que muito mais facilmente que outrora, tendemos a embaralhar nossa escala de valores e comprometer nossa capacidade de julgamento, ao sermos tentados a pensar que não são mais as pessoas, e sim as coisas, os agentes de transformação.
Esse jovem afoito ao qual eu acabara de sacudir os ombros, era um especialista em marketing industrial, com um histórico irrepreensível de sucesso em seus outros empregos. Exatamente como eu, quando entrei na companhia.
Lembro-me de que o dia de meu ingresso na empresa foi muito especial para mim. Por dois motivos: O primeiro é que eu seria apresentado ao alto corpo administrativo como o novo Diretor Geral para a América Latina. Nada mau para um garoto pobre, que um dia sonhara apenas em conhecer a capital do Estado em que nascera! O segundo, eu ainda sequer sabia da existência, mas veio a ser ainda mais importante que o primeiro!
Contudo, minha contratação não fora nada fácil. Eu, e todos os que competiram comigo, fomos submetidos durante meses a uma estafante maratona de entrevistas e testes, nos quais foram reprovados alguns dos mais renomados profissionais que eu conhecia.
Tal como esse jovem executivo, eu tinha também certo renome, principalmente por minha passagem pela última empresa onde atuei. Adepto dos resultados rápidos a qualquer custo, eu os perseguia afoitamente, não me importando com o destino de quantos estivessem em meu caminho. Para mim bastava apenas que minhas ações estivessem dentro da lei.
Eu estava felicíssimo por ter sido o escolhido, até porque na faculdade de administração que eu cursara, muitas vezes tínhamos estudado a biografia do fundador da companhia, um pitoresco octogenário recluso, considerado uma lenda viva no mundo dos negócios, e que raramente era visto em público. Além disso, eu acompanhava todos os artigos que podia encontrar sobre ele, e, claro, seu livro “Não Fale, Demonstre!”, além de monumental best seller era também meu livro de cabeceira.
Durante a fase final do processo de seleção que me escolheu, por duas vezes visitei a matriz, na Holanda, e, embora tendo sido entrevistado várias vezes por muitos dos vice-presidentes seniores, fui recebido muito rapidamente pelo “Poderoso Chefão”. Tão rapidamente, que mal tive tempo de perceber que estava, finalmente, diante do homem reconhecido mundialmente como um ícone da administração.
Informaram-me na ocasião, que ele havia aprovado pessoalmente meu ingresso na empresa, porque considerava a América Latina uma região estratégica na composição geográfica da companhia.
Confesso que não fiquei muito impressionado com aquele homenzinho franzino, de aparência frágil e olhar penetrante. Ele era muito diferente das fotos suas que eu já havia visto. Eu o imaginara um holandês severo e crítico, porque, raciocinava eu, ninguém construía uma companhia do tamanho da sua, usando a docilidade como ferramenta. Eu estava redondamente enganado, como logo descobriria.
Na reunião de apresentação, sentaram-me ao seu lado esquerdo. No seu lado direito, sentara-se o Vice-Presidente de Operações Para os Países em Desenvolvimento. Este era um jovem executivo, apenas alguns anos mais velho que eu, com cujas idéias a respeito de administração eu me afinara instantaneamente. Tal como ele, eu achava que os fins justificavam os meios.
Como eu, ele estava na companhia há pouco tempo. Considerado um prodígio das finanças, ele fora trazido para a empresa a peso de ouro, “roubado” de um dos maiores bancos da Europa.
O que mais me atraía nesse jovem executivo era a sua objetividade e franqueza. Sem meias palavras, ele costumava ir direto ao ponto central da conversa e sua agudez de raciocínio, habilmente utilizada, costumava confundir seus interlocutores menos avisados.
Ao tempo em que circulei pela matriz, durante o processo de seleção, ouvi pelos corredores alguns comentários depreciativos sobre sua pessoa. Comentavam que ele era desagregador, que estava influenciando o poderoso chefão com suas idéias ousadas etc. e aquilo que eu considerava espontaneidade, era visto por muitos como insensibilidade.
A verdade é que todos pareciam surpresos, e alguns até irritados, pela desenvoltura com que ele circulava entre seus pares, na alta administração. Diziam que o “velho” – como era também conhecido o poderoso chefão – estava amolecendo e deixando esse “garoto” recém chegado à vontade demais.
Naturalmente, passei ao largo desse zum-zum-zum, porque,afinal, era ele que indicaria os candidatos que iriam para a triagem final, feita pessoalmente pelo chefão. Agi corretamente, porque ele não só me incluiu entre os pré-selecionados, como fez um relatório positivo a meu respeito. Quando o “Velho” me escolheu, ele passou a intitular-se meu “tutor”.
Ocorre que há homens sábios – pouquíssimos, é bom que se diga – que sabem exatamente o que estão fazendo quando nós, os mortais comuns, lhes dirigimos críticas, por não alcançarmos a abrangência de sua compreensão. Explico:
Durante a reunião onde fui apresentado como o mais novo membro da empresa a ter acento na Diretoria, meu jovem “tutor” deu início a uma explanação da situação da empresa na América Latina:
O mercado - disse ele, num rápido discurso - vai de vento em popa. Os ventos estão a favor e precisamos aproveitar o momento. Por isso, decidimos ampliar nossa produção na América Latina. Para isso, estamos unificando as decisões no continente, e acabamos de contratar o profissional que deverá responder pelos resultados naquela região.
Todos o ouviam com muita atenção, porque a América Latina, era,como eu já sabia, muito importante nos planos estratégicos da companhia.
Assim, todos os olhares se voltaram para mim, enquanto me saudavam com ruidosas palmas. Depois que os aplausos cessaram, meu “tutor” continuou:
Os recursos para o investimento necessário à modernização de nossas instalações latino-americanas serão alocados a partir de uma reforma administrativa que será levada a efeito pelo novo Diretor Geral. Já analisei pormenorizadamente a situação econômica da empresa, e elaborei um plano de “reciclagem financeira”: Poderemos ganhar um bom dinheiro apenas nos aproveitando das brechas das leis daqueles países, além, é claro, de utilizarmos a nosso favor os altos índices inflacionários existentes na região.
O homem era um expert em finanças, de maneira que ninguém ousou tecer comentários aos seus argumentos.
Enquanto ele falava, uma exuberante apresentação desenrolava-se no telão à nossa frente. Gráficos e demonstrativos ilustravam minuciosamente as explanações-
Escolhemos um profissional experiente em ações de reestruturação - continuou ele - Eu lhe passei um plano básico de ação, que, obviamente será por ele detalhado antes de ser colocado em prática. Em linhas gerais, ficou claro para mim que nossa estrutura latino-americana terá que ser drasticamente otimizada, quer quanto à logística, quer quanto ao efetivo humano. De fato, segundo meus dados, estamos bastante “inchados” por lá.
Ele fez uma pausa e tomou um gole de água. Depois continuou:
Penso que dos 15.000 funcionários que temos lá atualmente, pelo menos 40% deles serão dispensados. Com isso, estimo que economizaremos algo em torno de 40 milhões anuais. Ao mesmo tempo, centralizaremos a propaganda, o treinamento e o atendimento ao cliente, o que nos dará uma economia de aproximadamente 8 milhões. Além disso, temos que rever também muitos dos benefícios que damos além do razoável. Refiro-me ao que chamamos de “investimentos sociais” - doações, financiamentos de creches para os filhos dos funcionários, cooperativas de consumo etc. Esses benefícios consomem anualmente mais de 3 milhões. Estes custos serão igualmente re-equacionados. Não há na região, segundo minhas informações, nenhuma outra empresa que ofereça tantos benefícios quanto a nossa, de maneira que não haverá parâmetros para comparações por parte dos sindicatos, quando deixarmos de oferecê-los. Além disso, a lentidão da Justiça desses países nos favorecerão, na medida em que não teremos que desembolsar imediatamente as indenizações trabalhistas, inevitáveis em reestruturações desse porte.
Nova pausa e novo gole de água.
Senhores – disse ele enquanto sentava-se – estas são, em linha gerais, as ações que deverão gerar os recursos para a alavancagem de nossa produção no continente sul americano.
Um murmúrio surgiu entre todos os presentes, sem que eu pudesse determinar se era ou não de aprovação. Quanto a mim, eu achei o plano brilhante, mesmo porque eu já o havia discutido com ele, nos dias que antecederam a reunião. Ansioso, eu não via a hora de pôr mãos à obra e reconstruir a empresa naquela parte do mundo.
Graças a Deus não teci nenhum comentário no momento, permanecendo calado, até que o Poderoso Chefão ergueu a mão, pedindo silêncio. O que se seguiu então, foi uma das cenas mais constrangedoras que já tive o desprazer de vivenciar.
Quando o silêncio se fez, o “velho” respirou profundamente, levantou-se, e apoiando os punhos sobre a mesa, dirigiu-se ao meu “tutor”, dizendo:
Queira retirar-se desta sala. O senhor está demitido!
Nenhum poder de verbalização pode descrever a estupefação que se via nos rostos de todos. Eu, em particular estava chocado. Afinal eu ajudara a elaborar o plano, e fornecera valiosas informações para viabilizá-lo!
Mas, ainda mais impressionante, era a palidez que desceu sobre o rosto do jovem executivo. Ele ficou ali sentado, olhando para o “velho” como se estivesse em transe. O silêncio era mortal e a ansiedade que se abatera sobre todos parecia ter cessado o fluir do próprio tempo! Eu já não sabia mais se haviam se passado segundos ou minutos, até que ouvi a voz do chefão, geralmente calma, ricochetear pelas paredes, quase gritando:
FORA!! Aguarde na sala ao lado para que possamos abreviar a rescisão de seu contrato de trabalho!
E como meu “tutor” não se moveu, a voz do “velho” soou novamente, inapelável:
FORA!
O silêncio era brutal, e enquanto todos nós tentávamos compreender o que tinha acontecido, o Poderso Chefão saiu da sala dizendo:
Volto em seguida para continuarmos a reunião!
Quando ele se foi, a ala jovem dos presentes – eu entre eles - nos levantamos e fomos até onde estava o jovem demitido, que, debruçado sobre os papéis de nosso plano, mantinha a cabeça baixa e o olhar distante, parecendo anestesiado. Tentamos consolá-lo da melhor maneira, enquanto alguns diretores mais antigos na casa, mantinham-se em seus lugares, com um sorriso aparentemente hipócrita nos lábios. Mas esse era o dia das grandes lições, e eu iria me arrepender desse pré-julgamento mais cedo do que supunha!
Ainda estávamos ladeando o infeliz, quando o Poderoso Chefão entrou novamente na sala e retomou seu lugar à mesa.
Só então meu ex-tutor pareceu dar sinais de vida, e perfilando-se na cadeira, começou a recolher os papéis espalhados sobre a mesa. Tinha os olhos marejados, num esforço baldado para conter a emoção. Confesso que eu também estava emocionado e me perguntando se tudo o que eu lera sobre esse homem para quem eu trabalharia, era verdade.
Quando o executivo levantou-se, finalmente, parecia uma sombra do homem que tão confiantemente discorrera sobre nosso “brilhante” plano de trabalho. Era um ser patético, com o olhar sem foco e o rosto sem expressão. Então a voz do “velho” soou novamente, num comando suave, porém que não admitia réplicas:
Sente-se!
Como um autômato, meu “tutor” obedeceu ao comando imediatamente, parecendo ainda sedado pela inesperada demissão.
Agora você sabe como é ser demitido sem que tenha feito por merecer. Sua demissão durou apenas cinco minutos, mas espero que eles tenham servido para fazê-lo repensar suas atitudes a respeito de pessoas. Ser demitido sem motivo não é somente humilhante, é também uma traição da empresa para com o empregado. Se você acha que passei dos limites, fique á vontade para demitir-se, porém se o fizer, demonstrará que não aprendeu nada, e eu terei apenas que lamentar por seu futuro! Se permanecer conosco dará uma demonstração pública de humildade, condição indispensável a todo bom comandante.
Enquanto olhávamos atônitos para o poderoso chefão, os diretores antigos sorriam abertamente, certamente por conhecerem os seus métodos, ou, talvez, por já terem sido, algum dia, submetidos ao mesmo tratamento.
O “velho” continuou:
É fácil despedir 6.000 pessoas sem ter que olhar nos seus olhos. Difícil é explicar às suas esposas e filhos que meia dúzia de "notáveis" se reuniram no outro lado do mundo e decidiram seu destino sem lhes prestar a mínima atenção. E pior! tendo tantos caminhos alternativos a seguir. Se decidir ficar conosco – continuou o chefão – tenha em mente que demissões deve ser sempre o último desses caminhos.
Meu “tutor”, antes tão senhor de si, permanecia tentando segurar as lágrimas, diante do que ouvia. O “velho” continuou:
Não me considere um hipócrita, porque fabrico máquinas que tiram o emprego de muitas pessoas. Ao fabricá-las, dou emprego a muitas outras. Sou um industrial, não um humanista, mas isso não me dá o direito de condenar pessoas ao desamparo, sem necessidade. Nossa sobrevivência não está em risco, e nossa lucratividade geral é boa. Portanto, a ampliação de nossas atividades na América Latina deveria ser motivo de festa, não de tristeza. Pretendemos crescer, e para isso temos que construir, não destruir.
E, se outra razão não houvesse para se contrapor às demissões, pense nos valores que a empresa já investiu no desenvolvimento desse pessoal, e deduza-os de suas projeções de economia.
Isto dizendo, o “velho” encerrou o discurso, dirigindo-se a mim:
Assuma seu cargo na América Latina e ambiente-se na companhia. Pense no que eu disse, porque dentro de três meses nos reuniremos novamente para traçarmos um novo plano de ação para aquela região. E por favor, não se esqueça de que os fins não justificam os meios, os meios é que justificam os fins! Lembrando-se disso você nunca será tentado a brincar de Deus!
Se sou hoje o Presidente Mundial da companhia, talvez tenha sido por nunca ter me esquecido desse conselho.
Amanhã começarei minhas visitas a todas as nossas fábricas no continente. Provavelmente em cada uma delas encontrarei diretores que gostam de brincar de Deus. Tentarei salvar suas carreiras profissionais, informando-lhes, ainda que de maneira cruel, que eles são apenas humanos, e, como tais, falhos!
O ruído do helicóptero que veio me buscar tirou-me do devaneio, mas antes de levantar-me fiquei olhando para a cadeira vazia do jovem executivo a quem ministrei o mesmo tratamento de choque. Ele precisava descobrir que existe uma linha divisória entre a legalidade e a ética, que apesar de tênue, não pode ser esquecida.