O mundo é redondo, mas a vida é quadrada...

Se eu tivesse que tabular minha vida, entre tantos encontros e desencontros, encantos e desencantos, ter vivido em tantos cantos, tantos risos e prantos... meu mapa astral teria mais céus do que estrelas.

Toda vida no princípio é monótona, nove meses flutuando em líquidos, sem ao menos saber nadar, recinto fechado, sem grandes aventuras, marcada por sucessivos afagos maternos e o incômodo da questão: é menino ou menina?

É mais sensato pular para os dez anos, quando minha bochecha era alvo das tias de bigode grosso e meus pés escravos da lama. Sorria com fartura e fazia da arte de viver a expressão maior de felicidade, porque eu iria me incomodar com o amanhã? Bastavam dois gravetos para fazer o gol, ou uma forquilha de goiabeira para o estilingue. Não, não havia pecado, era parte da composição homem/natureza o sentimento de caçar.

Por falar em caçar, avancemos para os quatorze anos, tempo de guerra, tempo de luta, uma menina para cada sorriso, um beijo para cada dedo, uma aventura para cada pedacinho do corpo, des-co-bri-men-to, palavra chave para a adolescência, não o julgo sórdido dos adultos, adúlteros, adulterados, que faziam tudo errado e queriam nos ensinar o que era certo, justo nós, que amávamos livre e sinceramente cada criatura, e em cada romance colocávamos toda força de nossos corações.

Mas os corações crescem após os vinte, momento em que Deus sorteia quem será o que e a quem deverá pertencer. Hora de se virar sozinho, em todos os sentidos, batalhar por cada grama de tempo e cada pedaço de sentimento que vingar dentro desse tempo, hora de cuidar de si e de quem você ama, de prover mais do que viver, de saber mais do que sentir e terminar com a certeza de que não era exatamente aquilo que deveria ter sido feito.

Mas só nos lembraremos disso aos quarenta, quando a distância entre ser jovem ou velho é cada vez próxima, só dependendo do estado de espírito de cada um. É quando nasce a dificuldade de se lidar com o passado, mesmo ele estando tão presente em cada segundo dos dias que vivemos, ou viveremos, ou viveríamos... Tão longe do que deveria estar próximo e tão perto do que deveria estar distante. O passado é a mola que impulsiona a nossa verdade neste período. Idade da resistência, da quase desistência, do entendimento do nada, questionamento de tudo, a inconsistente busca por respostas outrora adiadas pela juventude. Idade para se cuidar, não se deixar cair na soberba tentando adiar o relógio da vida, que anda cada vez mais rápido...

E rapidamente se chega aos cinquenta, tempo de relaxar, repensar suas atitudes, curtir a praia, a natureza, ir fundo no sorriso, usar havaianas, camisa larga, comer sem culpa, sentir sem medo, tornar-se cúmplice das estrelas, mesmo que o físico não corresponda às expectativas, somados os esforços, a lei da compensação perde a virgindade com você. Concordando ou não, foram cinco décadas descontinuadas, de múltiplas personalidades em uma só alma, um grande complexo de pensamentos, fábrica de ideias e ideais. Não importa, você ultrapassou a barreira dos trinta e venceu a teimosia dos quarenta. Nada mais consolador do que se enxergar no espelho como você realmente é, não como gostaria de ser, ou pior, como os outros gostariam que você fosse. Salvo os direitos autorais de Deus, nem todos foram feitos a sua imagem e semelhança... Renascimento do amor próprio e do próprio amor, face à proximidade do fim tudo se torna mais intenso e de indiscutível importância. O amor, que já era incalculável, torna-se aliado da almejada eternidade. Melhor tempo para ser amado e para amar, pois o amor chega vestido com as malhas da verdade e capaz de superar os limites do impossível. De difícil compreensão este vasto sentimento, que supera a luz do dia e a solidão das noites, que devolve a saudade ao colo de quem a criou, que reflete a transparência da alma e não impõe limite às palavras. Simples, e por ser tão simples de ser vivido, raramente é compreendido. Somente aos cinquenta é possível ter noção da coisas que o nosso coração inventa. O resto é tempo, o agora, o que virá e o que já foi, na inexpugnável muralha do destino.
 
 
MARIO SERGIO SOUZA ANDRADE
Enviado por MARIO SERGIO SOUZA ANDRADE em 07/07/2017
Reeditado em 19/09/2020
Código do texto: T6048287
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