1008-POLITICA E FRANGO AO MOLHO PARDO -
A política municipal fervia no ano de 1967 em São Sebastião do Paraíso. Embora o governo militar cerceasse as atividades políticas e somente dois partidos pudessem apresentar candidatos, a campanha era ferrenha.
O candidato da Arena contava com amplo apoio de políticos locais e até de deputados estadual e federal. Para mostrar que quem mandava era mesmo a Arena — partido oficial do governo militar, instaurado em 1964 — a comissão municipal do candidato a prefeito convidou nada mais nada menos do que o conhecido político Murilo Badaró, eleito deputado federal por Minas Gerais em 1966.
Convite aceito e presença confirmada para uma noite de quinta feira. O deputado estaria com a comissão do partido, dos candidatos (prefeito, vice-prefeito e vereadores) apenas algumas horas.
Murilo Badaró desceu do pequeno avião que o transportara por volta das cinco da tarde. Recebido com as honras de praxe, foi levado ao melhor hotel da cidade, para um repouso de algumas horas antes de se encontrar com os correligionários.
Meu sogro, que era o candidato a prefeito, incumbiu-me de ir ao hotel ás dezenove horas e acompanhar o deputado até a residência do candidato a vice-prefeito, onde o encontro seria realizado.
Eu não estava “por dentro” do programa da reunião, pois não fazia parte do grupo político. Apenas fui escolhido pela confiança que inspirava nos amigos do diretório da Arena. Tampouco conhecia Murilo Badaró.
Pelo sim, pelo não, vinte minutos antes das sete me encontrava no saguão do hotel e pedi ao atendente que avisasse ao deputado da minha presença.
— O deputado disse para o senhor ir até o quarto dele. — Me disse o rapaz, enquanto repunha o interfone no suporte. — É o 202.
Subi a escada rapidamente ansioso por conhecer tão ilustre figura. Bati de leve na porta do 202.
— Entre, está aberta.
Entrei.
Murilo Badaró era um homem alto, moreno, aparentando uns trinta e poucos anos, de feições bem delineadas. Elegante, estava terminando de dar o nó na gravata e sem parar com os movimentos das mãos e braços, disse:
– Já estou pronto. Falta só a gravata e o paletó. Sente-se.
Falei como respondendo ao deputado.
— Não há pressa. O carro está no estacionamento do hotel.
— Sou Murilo Badaró, talvez você já me conheça. Já votou em mim? Claro que sim.
Voz forte e decidida. Gostei do homem e de seu jeito.
— Muito prazer, deputado. Sou Antonio Roque Gobbo, mas pode me chamar de Gobbinho.
Vestindo o paletó, disse ele:
— Vamos.
Saímos do quarto. No fundo do corredor havia um espelho onde ele parou por instantes para ajeitar a gravata, passar a mão pela calva e alisar o paletó.
Tomei a dianteira. Não conversamos até chegarmos ao carro, quando ele disse:
— Você conhece o Restaurante do Beco? É bom?
— Sim, é o melhor da cidade.
— Vamos pra lá.
— A comissão já está à espera do senhor, deputado.
— Vai ser rápido. Já encomendei um franguinho ao molho, não vamos demorar.
Eu de nada sabia do programa do encontro, portanto acompanhei o deputado ao restaurante.
De fato, já era esperado. Tão logo entramos o gerente, sabedor de quem se tratava, veio nos receber.
— Boa noite, deputado!
Apertaram as mãos.
— Boa noite, seu Antonio!
Ele me conhecia, mas não apertou minha mão.
— Reservei a melhor mesa para o senhor. — Disse, enquanto nos guiava para uma mesa bem arrumada, num local discreto. — O senhor prefere um vinho?
— Apenas água São Lourenço. E uma aguardente para abrir o apetite. De Salinas, por favor.
— Pois não. Com licença. – Fez uma mesura especial ao deputado. Para o gerente do restaurante, eu nem existia.
Aguardamos conversando amenidades — sobre a cidade, quem eu era, o que fazia, essas coisas — apenas alguns minutos. Logo retornou o gerente, com uma garrafa de água mineral São Lourenço, uma garrafa de aguardente e dois “martelinhos”, os copinhos apropriados para tomar cachaça. Serviu-nos a aguardente — que era, realmente, de Salinas — e abriu a garrafa de água mineral. Um garçom serviu uma pequena tigela com torradas e tacinhas com manteiga.
— Vamos atacar! — disse o deputado, me colocando à vontade. Suspendeu o martelinho para um brinde e eu o acompanhei.
— À vitoria! — Brindamos batendo delicadamente as bordas dos martelinhos.
Costumava tomar cachaça aos golinhos, mas quando vi o deputado virar o copinho de uma só vez, o acompanhei.
Mais alguns minutos e chegou o prato. Uma terrina média, fumegante, cheia de frango ao molho pardo. E uma travessa de arroz branco como neve.
— Gosto demais deste prato. Não perco oportunidade de pedir, seja onde for. Já comi frango ao molho pardo até em Paris.
E mergulhou a concha, retirando pedaços de frango e muito molho escuro. Encheu o prato e serviu-se de uma pequena porção de arroz.
— Sirva-se, Gobbinho. Dá pra dois.
Eu já havia jantado, prevendo uma longa noite de discursos, conversas, essas coisas de reuniões de políticos.
— Obrigado, deputado. Jantei há pouco mais de meia hora.
Trabalhando com destreza a faca e o garfo, em poucos minutos o deputado deu conta do frango, molho e arroz. Entremeados de pequenas doses de cachaça.
E eu ali, olhando, conversando, enquanto o deputado limpou a terrina e o próprio prato.
Ao final, passou o guardanapo pelos lábios, encostou-se na cadeira, numa atitude de plenitude gastronômica. Em seguida fez um aceno ao gerente, que nos observava discretamente. Quando se aproximou, Murilo disse:
— A conta, por favor.
— Ora, senhor deputado. É por conta da casa. — E abriu-se num sorriso amplo.
Meio sem jeito, Murilo agradeceu. Como já estava com a carteira na mão, sacou uma nota de cem cruzeiros e disse:
— Muito obrigado! Aceite esta para a caixinha dos garçons.
Levantou-se e eu também. Apertou a mão do gerente, agradecendo mais uma vez, e eu também.
Entramos no carro. Haviam decorrido apenas trinta minutos. Guiei com tranquilidade até a casa onde o deputado era esperado.
Ao descer, foi aplaudido por uma pequena multidão na calçada e à porta da casa. Cumprimentos, abraços, tal e coisa. Segui de perto o deputado.
Entramos juntos. O candidato a vice-prefeito, dono da casa, e sua mulher, convidou o deputado par ir à sala de jantar.
Ao entrarmos, uma extensa mesa estava magnificamente posta, com pratos de fina porcelana, copos elegantes (seriam de cristais?), toalhas e guardanapos alvíssimos.
A esposa do candidato a vice disse então, com muita simplicidade e encanto:
— Deputado, como sabemos de sua preferência, mandei preparar um jantar cujo prato principal é frango ao molho pardo.
Eu estava ao lado de Murilo e senti um baque! Fiquei vermelho com um camarão, prevendo... nem sei o quê.
O deputado abriu um amplo sorriso e respondeu:
— Quanta gentileza! De fato, gosto demais de frango ao molho pardo. Como a senhora descobriu?
Pensei: Politicos... Nunca perdem a chance de elogiar ninguém. Mas ele já ta cheio de frango ao molho pardo. Pelo menos por hoje.
O deputado foi convidado a ocupar a cadeira central. À sua esquerda, sentou-se meu sogro, e a cadeira da esquerda já estava sendo puxada pelo presidente do diretório, para se sentar, quando ele pediu:
— Gobbinho, você se senta aqui, ao meu lado.
Sentei-me, sentindo um pouco constrangido, pois nada era na política local.
Uma moça aproximou-se, oferecendo ao deputado:
— Aceita vinho?
E ele, mais do que depressa:
— Ainda não. Você tem uma cachacinha?
— Pois não, senhor deputado. ‘
Voltou logo depois com uma garrafa de “Sobradinha” e um martelinho. Ele pegou a garrafa e:
— É de Salinas! Como você adivinhou?
E serviu-se de uma boa dose.
No decorrer do jantar, fiquei admirado de ver com uma pessoa pode gostar tanto de frango ao molho pardo. Da terrina (mais ou menos do tamanho daquela do restaurante) colocada à sua frente, o deputado comeu todo o conteúdo, recostando-se, ao final, com aquela mesma sensação de plenitude após uma boa refeição.
Pensei:
Esse Murilo Badaró sabe fazer política. Até com frango ao molho pardo.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 27.junho.2010.
Conto # 1008 da Série 1.OOO HISTÓRIAS
Murilo Badaró- Nascido em 18.9.1931 (Minas Novas-MG)– Faleceu em 15.06.2010(BH-MG)