1007-O PRESENTE DA NAMORADA-

Domingo à tarde. Sol quente, calor, pasmaceira geral.

Toniquinho e o pai estão sentados no comprido banco de madeira do alpendre. O pai lê artigos no exemplar de Seleções do RD, daquele mês, novembro de 1945.

O garoto de dez anos recorta anúncios de filmes de um jornal.

Em silêncio. Nenhum movimento no interior da casa. Nenhum barulho chega da rua.

Um menino preto retinto bate no portão, que está aberto. Deve ter a mesma idade de Toniquinho.

Ambos levantam os olhos a ver quem era.

—É seu amigo? — Pergunta o pai.

—Não, num conheço ele. — Responde Tuniquinho.

—Pode entrar! — Ordena o pai, fechando a revista, não sem antes marcar com um pedaço de papelão onde parara de ler.

O pretinho entra. Traz debaixo do braço um canudo grosso, que entrega a Toniquinho, dizendo.

— Sua namorada mandou entregar.

E sai correndo.

Toniquinho pega o canudo, assustado. Não tem namorada e nem sabe o que está ali dentro.

— Namorada? — pergunta o pai, já sinalizando a desaprovação. — Que negócio é esse?

— Sei lá, pai. Num tenho nenhuma namorada, não.

— Abre logo, vê o que é!

— Mas, pai, num é prá mim, não. Num tenho namorada.

Ele falava a verdade. Bem que tentava namorar Cidinha, colega de classe no grupo escolar, mas ela jamais lhe dera bola.

— Ara, menino, você ta com medo de abrir? Me dá aqui que eu abro.

— Não, pode deixar, eu mesmo vejo o que é.

Desamarra o barbante. O papel de embrulho sai com facilidade, revelando uma revista.

— É... é... um gibi!

Tenta esconder do pai a revista. É um Gibi Mensal a capa brilhante com o desenho de Tocha Humana e Centelha, vermelhos e amarelos esparramando-se por toda parte. Ao mesmo tempo em que está muito contente, fica com um medo tremendo do pai, que não lhe permite a leitura de gibis. “É coisa de bandido, só tem violência. Quem lê gibi vira bandido também” dizia o pai.

O pai estica a cabeça a fim de ver o gibi.

— Sim, senhor, hein! Namorando e recebendo gibis de presente da namorada. Me deixa ver!

Animado por uma coragem que nunca teve ante, Toniquinho salta do banco segurando firme o gibi contra o peito e entra correndo prá dentro de casa.

— Mais tarde a gente conversa! — fala o pai, em voz alta.

No quarto, deitado na cama, Toniquinho nem acredita no que vê, no que tem nas mãos.

Num interessa quem mandou. Vou ler bem depressa antes que papai me tome. — pensa, passando as folhas, extasiado com os desenhos e a ação dos personagens. E lê os balões, demorando-se nos quadrinhos, onde os heróis e bandidos brigam prá valer. É claro que os heróis sempre vencem, mas o decorrer da história é que é importante.

Silenciosamente, o pai chega até a porta aberta do quarto e vê o filho mergulhado na leitura das aventuras. Os olhos brilham e a concentração é total, ignorando tudo ao seu redor.

Enternece-se. E desiste de fazer um sermão ou tomar a revista do filho.

O mistério permanece até o anoitecer. Nem o pai nem o filho falam nada sobre o gibi. Um pacto de silêncio foi estabelecido tacitamente entre os dois.

Armando, o tio solteirão que reside na mesma casa, chega quando todos estão à mesa para o lanche vespertino.

Lava as mãos na pia da cozinha e senta-se no seu lugar de costume. Sempre sorrindo, cumprimentando um por um, deixa Tuniquinho por último, a quem pergunta:

— Então, Tuniquinho, gostou do presente de sua namorada?

O garoto responde mais do que depressa:

— Num tenho namorada, tio.

O pai, surpreso, encara o cunhado:

— Uai, Armandim, como é que você sabe disso? Ninguém aqui falou nada!

— Hein?... Hein! ... Hã...

Armando, o tio brincalhão, parece sem jeito. Seu rosto cora-se.

— Ah! Eu estava na banca quando a menina comprou o gibi e mandou embrulhar e entregar prá você.

O pai olha de cenho fechado para Toniquinho. O garoto abaixa o rosto e diz:

— Mas eu num tenho namorada! Num tenho! Num tenho!

O tio Armando vê que a brincadeira que pretendia fazer com o sobrinho havia se transformado num caso sério.

A mãe de Tuniquinho intui que Armando, seu irmão, tinha “preparado alguma” e diz:

— Armandim, Armandim! Conta logo que você aprontou.

Muito sem jeito, passando a mão sobre a cabeça do sobrinho, o tio confessa:

— Desculpa, Tuniquinho. Só pensei na sua alegria ao receber a revista. Você gosta tanto de gibis. Desculpa.

O pai entrou na conversa:

— E eu quase lhe apliquei um castigo por conta desse gibi... e da história da namorada.

— Desculpa, também, Pedro. Foi uma brincadeira que não deu certo.

— Tá bom. Na próxima vez, pensa duas vezes antes de...

Armando interrompeu o cunhado:

— Da próxima vez, Tuniquinho, levo você na Livraria Amaral e você escolhe o livro de histórias que você quiser.

Pedro, o pai severo, Armando, o tio brincalhão e Toniquinho o garoto que gostava de gibis, começaram a se servir do lanche vespertino.

A paz estava restabelecida na família.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 25 de abril de 2017

Conto # 1007 da SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/07/2017
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