Fio de cabelo

Eu já estava de saída quando decidi olhar-me no espelho do quarto. Olhei-me atentamente. Comecei pelo meu rosto e fui descendo os olhos. A camisa estava perfeita: branca, lisa como a superfície de uma folha de papel. As mangas perfeitamente encaixadas no ombro e nos braços. A calça preta sem dobras, não sobrava nem faltava. O sapato brilhava. Tudo estava nos conformes. Mas foi ai que houve um problema. Por cima da camisa, sem que eu o tivesse notado antes, um fio de cabelo repousava com suas curvas sobre o branco uniforme. Isso, para o leitor pode não ser nada, mas para mim era o fim do mundo. Aquela coisa atrapalhava toda a harmonia que se depositara em mim. Um fio negro, sobre a superfície branca de minha camisa anunciava um desconforto interior e exterior, aquilo não deveria estar lá. As minhas mãos então começaram a se mexer de vagar, os meus dedos pareciam garras esperando o meu comando para retirar aquele impostor de mim. Entretanto, eu não podia conceder tal permissão porque poderia amassar o tecido ou ainda, quem sabe, pegar uma doença daquele fio. E, mesmo que nada disso ocorresse, onde eu o colocaria depois? Jogaria no chão correndo o risco de tê-lo em mim novamente? Atiraria o maldito pela janela sendo que outra pessoa pudesse tê-lo também? Não! Eu precisava de outro plano. Algo mais inteligente que o fizesse sumir imediatamente dali. Queimá-lo talvez? Mas como, se eu não tinha um fósforo ou isqueiro por perto? E se incinerasse a camisa?! Poderia ir até a cozinha e pegar algo para queimá-lo, isso se... não houvesse mais fios por ai a me esperar.! Um já me bastava àquela hora. Já era um grande incômodo para mim. Então eu precisava resolver ali, rápido, num só movimento. Eu tremia de medo. Mexer rápido poderia estragar tudo. A pressa conduz ao erro, todos sabem disso.

Eu continuava olhando aquela coisa. Ela se mexia! Tomou largura, parecia ter uma cabeça. Olhos. Boca. Presas que poderia me morder. Abocanhar-me tão rápido que eu sentia a morte me abraçando pelas costas. O mais mortal dos seres estava ali, em mim, descansando em minha camisa. Retirava a minha paz. Sugando as minhas energias! Um fio de cabelo, como aquilo poderia ser tão ridículo em qualquer outra situação, e ali tomar forma de um monstro tirano que erige um reino sobre mim?! E o desgraçado se mexia, andava, rodeava o meu corpo como se ele fosse infinito. Eu sentia cada parte de mim, por onde passava o monstro, morrer. Tarde demais. Não havia solução ao meu alcance. Aquilo iria me devorar vivo. Mas foi então que eu percebi ter deixado um detalhe de lado. Um único detalhe que mudaria tudo. Eu não tinha cabelo. Logo notei que não poderia ser meu. Foi um equívoco de minha mente: não existia fio algum. Mesmo assim, ele não sumia. Ora, se era uma ilusão, por que não sumia? Por que a minha consciência não expulsava aquela imagem horrível de meus olhos sendo que eu já havia percebido a fraude? Simples. O fio não era meu. Um outro poluidor. Um indigente! é o responsável pelo crime! Alguém o pôs ali de propósito. Um que conhece a minha fraqueza decidiu se vingar de mim. Injustiça. Meus dentes raspavam um nos outros. Mordiam os meus lábios. Sentia o gosto de sangue na boca. Eu consumia a mim mesmo por conta de um fio de cabelo irrelevante postado em mim por uma criatura dominada pelo mal.

Algo que não era meu estava em mim. E criou raízes. Aprofundou-se na minha carne. Atingiu o meu coração. Todos os meus órgãos como um câncer. Sentia uma dor impossível. No entanto não gritava. Não sentia a necessidade de expressar dor. Não tinha o direito nem o dever de expressar algo para uma coisa que nem sequer era minha. As raízes atingiam os meus nervos. Agora, aquilo estava no controle de meu corpo. Temia pela minha mente. Não, não poderia em controlar por completo. Mas isso era mentira... A desgraça já havia se instaurado desde o começo. Ela me manteve ali até o momento. Distraía-me de algo. Havia alguma coisa acontecendo e eu não poderia saber. Olhei para os lados sem ver nada diferente. Ele tentava me distrair dele mesmo! Mas como? Qual o próximo passo? Qual o fim daquilo? Eu sentia um cansaço profundo. Estava prestes a desmaiar. Havia pensado muito sobre o fio, como ele veio parar ali. Até que me dei conta de nunca, em momento algum, ter reparado diretamente no fio. Com muito cuidado, estiquei uma das minhas mãos e pude tocá-lo! Percebi logo que não estava em mim. Ele estava sobre o espelho e, portanto, não havia me tocado, me sujado. Senti-me aliviado. O desespero foi embora. Tudo isso não passava de um mal entendido que me distraía enquanto a vela sob a cômoda caía no tapete e incendiava a casa toda, inclusive a mim.

CAMPO GRANDE - MS

03/07/17