Carreira

O céu estava fechado, assim como seu humor. Realmente aquele não parecia ser um bom dia para sair de casa. Ainda assim resolveu não esperar que alguém viesse salvá-lo do tédio...

Endireitou a cortina pra que um pouco mais de luz entrasse no quarto e se esticou até que os ossos de suas costas estalassem. Recolheu as latas de cerveja que deixara alinhadas junto a parede, como soldados em um pelotão de fuzilamento. Havia matado todas sem muita piedade. Talvez um dia a cerveja o matasse... O karma não falha.

Apesar da quantidade de bebida ingerida na noite anterior ele não se sentia ressacado. Só estava cansado. Um cansaço mais existencial do que físico.

Seu quarto, sua casa, sua vida... estava tudo imerso no mais completo caos. Tudo fora de lugar. E as coisas estavam fora de lugar há tanto tempo que ele via aquilo quase que com naturalidade. E no fim das contas, talvez fosse natural.

Pensava nisso tudo enquanto recolhia o lixo e tentava deixar o quarto num estado mais apresentável. Ou pelo menos num estado em que não fosse tropeçar em nada.

Quando se deu por satisfeito, parou pra olhar novamente para o céu pela janela. Dava ver uma pequena abertura no meio das nuvens pretas, mas não o suficiente desfazer o clima de tarde chuvosa.

Ele se despiu e forçou-se a tomar um banho frio. Já há mais de um ano havia comprado um chuveiro elétrico, mas nunca o instalara. Procrastinação era um dos seus fortes. Mas quando a água fria escorreu por seu corpo ele se arrependeu de nunca tê-lo feito. Ficou o máximo de tempo que conseguiu debaixo d´água, e saiu tremendo enquanto já se enrolava na toalha.

Olhou-se no espelho, e viu seus lábios levemente arroxeados e as profundas olheiras sobre os olhos avermelhados. Privação do sono era algo que sempre tinha lhe feito mal e já fazia um bom tempo que não tinha uma boa noite de sono.

Escovou os dentes, vestiu-se e andou melancolicamente pela casa pensando no que poderia fazer com o resto do seu dia. Resolveu, por fim, não pensar muito. Juntou as coisas e saiu de casa. Deu de cara com ruas praticamente vazias. Num domingo chuvoso as pessoas tendiam a permanecer em casa... mas ele sentia que não era uma opção naquele momento.

Foi andando e chegou à parada de ônibus. Esperou alguns minutos e subiu no primeiro que passou. Sentou em uma cadeira na parte traseira e encostou a cabeça no vidro da janela.

Ficou olhando a rua e os carros passando e a chuva fina que caia. Já havia passado por dias mais felizes, mas com certeza também já teve dias muito piores... não que isso servisse de algum consolo.

Fechou os olhos e se deixou perder em pensamentos e lembranças de tempos mais fáceis.

Quando se deu conta, já estava perto do terminal, do outro lado da cidade.

Desceu na última estação e foi andando em direção ao porto. Passou por uma ponte completamente vazia. Parou na metade e olhou para o rio, completamente cheio e com a água num tom barrento, devido as chuvas. Por alguns instantes considerou um salto, mas logo mudou de ideia. Continuou com passos lentos o caminho que tinha se proposto anteriormente. Parou no porto, olhando para o mar e para as estátuas ao longe, na barreira de pedras. Um vento frio carregado de maresia e chuva lhe açoitava o rosto de uma maneira quase prazerosa. Ele já estivera ali incontáveis vezes. Ia até aquele ponto em busca de um pouco de paz, como se os casarões do Recife antigo, o cais, as pontes e o porto pudessem reviver alguma fagulha morta dentro de si. Sentou-se no batente e ponderou sobre o que tinha perdido e o que ainda restava de bom em sua vida. A melancolia batia forte em sua cabeça e impedia que ele se sentisse realmente vivo. Lamentar parecia sempre mais atraente, só que ele não podia fazer isso pra sempre se quisesse chegar a algum lugar.

Concluiu, por fim que recomeçaria de alguma forma. Procuraria esse recomeço em qualquer lugar que fosse possível.

Quase satisfeito, respirou fundo, enxugou os óculos da melhor forma que pode. Só que ai, sentiu uma mão em seu ombro, e quando virou-se, viu um moleque que devia ter no máximo 18 anos, com uma garrafa quebrada na mão.

- Passa o celular, boy. – Disse com uma voz imperiosa.

“Puta que pariu”, ele pensou “só faltava essa.”

Calmamente ele botou a mão no bolso e pegou o celular. Mas nesse momento, se perguntou por que deveria entregar pacificamente o telefone na mão do ladrão. Sempre achou que resistir a esse tipo de coisa era idiotice, mas ali, não parecia fazer sentido que o fizesse.

Fez como se fosse entregar o aparelho, mas num segundo de distração do ladrão, quando esse abaixou a garrafa, ele acertou-lhe o braço com força, e saiu correndo enquanto a garrafa se espatifava no chão.

Conhecendo bem aquela região, ele sabia que precisaria correr bastante até chegar à algum lugar que estivesse seguro. Principalmente num dia de chuva.

E correu alucinadamente, enquanto o ladrão vinha atrás.

Correu sem olhar pra trás, rindo de sua própria loucura. Chegou até a primeira ponte e o ladrão vinha atrás, cada vez mais perto. Cruzou uma rua, e quase foi atropelado, mas seguiu, como louco e quase sem fôlego.

Parou para buscar um pouco de ar, no meio da ponte, e olhou pra trás. O ladrão tinha desistido.

ainda assim continuou correndo até a praça do diário e se abrigou num fiteiro que estava aberto.

Quando se sentiu recuperado do susto e do esforço, procurou o seu ponto de ônibus para voltar pra casa.

Sentindo-se de alguma forma renovado, ele achou que as coisas realmente mudariam daí pra frente.

E talvez, realmente fossem mudar.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 02/07/2017
Reeditado em 02/07/2017
Código do texto: T6043603
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