ZÉ PEIXEIRO
Zé peixeiro era um homem de meia idade, aparentando aproximadamente uns 55 anos. Ele passava todos os dias por volta das sete horas com seu carrinho de peixe oferecendo seus produtos a toda vizinhança. Dona Maria era sempre a primeira a comprar um quilo de cardosinho, seu João era o segundo freguês, exigente, porém bom pagador repetia a mesma pergunta: seu Zé o peixe é fresquinho mesmo? Meio contrariado o coitado do peixeiro, dizia: é sim seu João, e eu lá sou homem de enganar meu freguês? E assim passava a manhã rápida para o seu Zé peixeiro vendendo todo seu produto naquele bairro. O resto do dia seu Zé peixeiro preenchia com boas anedotas entre seus amigos. Passava horas contando piadas, conversando sobre o dia a dia das pessoas, discutia política, pois apesar de ser simples peixeiro se interessava em assuntos que norteavam sua cidade e o país. Dizia ele ser um intelectual sem título, aprendia tudo rápido, se vangloriava de ter pensamentos e ideias instantâneas. A gurizada do bairro recorria a ele quando as dúvidas surgiam em seus caminhos. As senhoras também recorriam a ele para reclamarem de seus maridos e filhos e as donzelas, bem as donzelas recorriam a ele em momentos de desespero....... curiosamente ele era um homem sozinho, nunca falara de sua vida, de onde viera, quem fora no passado. Apenas dizia ter sido um grande pescador de altos mares, porém cansara desta vida e resolvera vender peixe de porta em porta, assim tinha mais tempo de conviver com pessoas, trocar ideias, manusear o dinheiro etc e tal. Quando perguntavam seu endereço, dizia morar na curva dos sete ventos onde o gato perdeu as botas. Ele tinha muitos amigos, mas também haviam muitos homens enciumados que não conseguiam explicar tal sentimento perante aquele ser. Sua postura e atitude social despertavam algumas interrogações por parte de alguns casados ou quase casados, inclusive do padre que não entendia e não conhecia a história do Zé. Toda vez que o encontrava cobrava sua presença na missa de domingo, o que nunca ocorria. Questionava-se como um filho de Deus não se confessa, não vai à missa para comungar, pensava, vai que ele é um ateu, filho de belzebu? por isso não aparece na missa. Tenho de rezar mais por esta alma perdida. Estes pensamentos provocava um grande sofrimento ao pobre do padre. Um dia resolveu tirar tudo a limpo e foi ao encontro do Zé comprar peixe como pretexto para marcar um encontro o que acertaram para a tarde seguinte. O velho padre saiu para sua casa feliz da vida pensando, finalmente vou salvar esta alma perdida. Chegou o dia e o Zé chegou à casa do padre na hora combinada, pois uma coisa é certa, o Zé era pontual tal qual um britânico. Após as formalidades triviais o padre oferece um café com biscoito a tomar na varanda da casa paroquial defronte com a praça principal, o que, quem ali estava sentado tinha uma visão global do entorno da praça. Avistava todas as pessoas que por ali circulavam permitindo por outro lado serem vistos pelos transeuntes provocando uma certa curiosidade dos mesmos. Alguns se perguntavam o que eles tanto conversavam, outros resmungavam de não estarem ali. Algumas mulheres se preocupavam com teor da conversa, seria um simples bate papo ou uma confissão, eis suas preocupações.
Mas meu caro Zé te conheço há bastante tempo, quer dizer, te vejo trabalhando pelas manhãs e o resto do dia conversando com as pessoas, jogando conversa fora, no entanto nunca te vi na minha igreja. Sempre está só, ninguém conhece tua casa, me desculpe minha inconveniência, mas como pastor de ovelhas me sinto no direito de tentar recuperar algumas ovelhas perdidas.
Sabe seu padre, não precisa se preocupar comigo, minha vida é ótima. Faço o que gosto tenho amigos, procuro ser sincero a medida do possível e mais importante, meu espírito está em paz. Sinto uma paz interior muito grande, que talvez nem o senhor tenha este privilégio, sabe por que não vou à igreja? Porque minhas convicções de religião diferem de muitas pessoas, inclusive do senhor.
Como assim Zé? não entendi.
Bem vou tentar explicar pro senhor. Primeiro vou contar minha história para o senhor me entender. Eu fui um grande embarcado, viajei pelo mundo. Conheci terras distantes, povos diferentes, culturas diferentes e com isto fui armazenando conhecimentos, construindo uma identidade própria se é que me entende. Refleti bastante a respeito das religiões, o que elas pregam, seus cultos e ritos. Seus interesses mundanos e cheguei à conclusão que não diferem umas das outras, para mim são todas iguais. O que muda é a forma de dialogar com os fiéis, cada uma tenta impor sua verdade o que não concordo.
Mas Zé, tu acredita em Deus?
No meu Deus eu acredito, pois difere muito do Deus das religiões.
Mas assim tu confundes minha cabeça, Zé, me explique melhor esta ideia que tens de Deus.
Olha seu padre, para mim Deus está dentro de cada um e não nos templos como vocês apregoam. Ele deve ser sentido, amado e não imposto. Ele é um ser irreal, no entanto convive com a gente diariamente basta que acreditamos nisto, tenhamos fé sem medo, sem dogmas, viu como é simples?
Não vejo desta forma.
Pois é seu padre entendeu agora porque não vou à missa na sua igreja? Voltando a minha história. Num momento da minha vida, resolvi parar e fazer uma longa reflexão do meu caminhar até então. Resolvi mudar de vida, voltar para terra firme me apoiar nas minhas crenças, vivenciar com pessoas simples enfim, levar uma vida franciscana. Minhas posses me desfiz e para não ficar ocioso decidi ser um humilde peixeiro, ganhando a vida com humildade e honestidade, só isso. Sei que meu modo de ser desperta curiosidade e até fantasias, mas não me importo. Sinto-me maduro o suficiente para enfrentar as peripécias que a vida me apresenta.
Mas qual a tua formação acadêmica? Imagino que tenhas alguma, pois tu sabes discorrer os assuntos com naturalidade e esperteza.
Minha formação acadêmica é a vida, como já havia falado anteriormente. Meus estudos não passam do antigo ginasial, porém leio muito, procuro estar informado de tudo que acontece no país e no mundo, pois como falei antes, viajei pelo mundo, me comunico muito bem além do português. Cada lugar que chegava primeira coisa que fazia era comprar livros e um dicionário para conseguir me comunicar, pensa que foi fácil? Não foi não, mas com vontade e persistência sempre chegava aos meus objetivos. Estar sozinho foi minha opção quando resolvi dar uma guinada na minha vida. Tive muitas companheiras, no entanto nunca me permiti deixar descendentes, queria ter uma vida livre, coisas de jovem sonhador. Por isto decidi me desfazer dos bens materiais. Hoje meu bem maior é a amizade e o carinho das pessoas, não existe valor nenhum que pague uma amizade sincera, um calor humano, estar em paz consigo mesmo. Sentir Deus dentro de si, conversar com ele diariamente, agradecer a vida, a natureza. Olhe ao redor seu padre, que maravilha é ouvir um cantar de pássaro, estar sentado na beira de uma cachoeira e sentir a água bater no rosto, molhando os pés e sentir a brisa da mata penetrando seus poros suavemente. Experimentar o calor do sol entre as árvores refletindo na água te ofertando uma sensação de paz e tranquilidade. O perfume de uma rosa desabrochando no teu jardim, as gotas de orvalho a cair sobre a relva, uma noite de luar observando as estrelas. São poucas as pessoas que se permitem vivenciar tal experiência. E o senhor seu padre, já se permitiu a vivenciar tal experiência? Ou o senhor não consegue perceber Deus neste contexto?
Sabe Zé..... eu vejo a vida de uma forma um pouco diferente, minhas crenças não alcançam este estágio de percepção. Penso estar muito arraigado aos dogmas de minha igreja, o que não me permite tal sensibilidade e também aceitação.
Mas seu padre cada um de nós, somos seres únicos que estamos em comunhão com o criador independente de dogmas, ritos, crenças. Somos uma verdadeira simbiose entre criatura e criador, desta forma devemos estar atentos aos seus desígnios e perceber que a natureza também é sua criação, sendo assim ele também é a natureza. Desculpe-me, mas minha intenção não é ensinar o padre a rezar a missa, e sim colocar meus pontos de vista acerca da vida, já que o senhor me provocou, não é mesmo?
Realmente Zé, tens razão em dizer que provoquei uma discussão o qual não tenho certeza em conseguir te acompanhar, no entanto fico muito grato pela conversa até aqui ocorrida. Penso ter acumulado algum conhecimento que estava longe do meu alcance. Porém devemos encerrar nossa conversa por aqui, pois tenho um compromisso em seguida, mas pretendo dar continuidade a este bate papo outro dia, quem sabe semana que vem?
Sem problemas, seu padre. Também gostei da conversa e me senti muito a vontade colocando meus pontos de vistas, que fique bem claro, esta é a minha verdade, cada um tem a sua verdade e com esta troca de experiências o ser humano contribui para seu crescimento, isto é que é legal.
Gostei de te conhecer um pouco além do que imaginava. Minhas impressões a teu respeito superaram minhas expectativas para não dizer me surpreenderam. Gosto de conversar com pessoas que contribuem para o nosso crescimento, não aqueles que falam só abobrinhas como a maioria de meus paroquianos. Semana que vem podemos estar aqui neste mesmo horário.
Tudo bem seu padre, também gostei de conversar com o senhor. Tenho certeza que vamos nos dar muito bem a partir de hoje, seremos mais amigos. Até semana que vem.
Valmir Vilmar de Sousa (Veve) 26/06/17