Letras da Arábia - Na carcaça do dromedário morto
Dizem que no Reino não há vergéis nem cidades atraentes. Mas Chico quer a prova, se aboleta em seu carro e se manda à toda por uma bela estrada de asfalto. À margem, um dromedário morto, atropelado, sem dúvida. Cheira mal, mas Chico não se incomoda, está acostumado a transitar pela imundície – outra espécie de imundície, fique claro.
Chico quer fugir de sua alma, está exausto de viver em círculos, ridiculamente lírico, sua prosa e seu verso encerrados num curral de incertezas. De que adianta o mergulho na baía de sua alma, se as pérolas que pesca a mercador nenhum causam espanto? Tão farto foi o material trazido dessas imersões que perdeu o valor de venda. E mesmo a seus olhos já não ofuscam. Agora nem mesmo a catarse pura e simples o satisfaz. Aliás, ela não mais existe. Continuar pescando pérolas? É preciso mudar de profissão, ó Chico Pescador!
É preciso mudar de profissão. Que tal catar carniça no dromedário morto? O esqueleto é imenso como uma catedral medieval, há espaçosas galerias por onde transitam corvos diligentes, à vontade na rapina.
- Por que não vem catar carniça, crocitam os ruidosos inquilinos, à vontade na rapina nas entranhas do dromedário atropelado.
Os beiços do dromedário, arregaçados, os dentes à mostra, um esgar entre o tétrico e o sardônico.
- Por que não muda de profissão? Questiona o dromedário. Se bem que a sua atividade não difere muito do catar carniça, concorda comigo, Chico Pescador?
Concorda. Com pouca diferença, Chico tem feito o mesmo. Belisca, fura, escava, esgaravata a sua alma e nunca sai do mesmo lugar. Retira as mesmas coisas que, de tanto revirar, já se mudaram em carniça.
- Que tal falar dos humildes?
- É outra carniça, dromedário.
- Quem? Os humildes?
- Não, o assunto. Tantos já falaram tanto sobre isso, que já não carece mais. E mudou alguma coisa? A humildade sob o poder é um círculo irreversível. Sempre existiu e sempre existirá.
Chico sente o sol arábico torrando seus braços, seu pescoço. Quer ir embora, mas acaba aceitando o convite tão gentil do dromedário morto e adentra-lhe o corpo por uma loca no lombo.
- Ei, Chico, fazem os corvos. Mas nem sequer os bicos descansam, enquanto falam. Diga dos poderosos, continuam.
Chico não responde. Chico pode apenas sentir piedade pelos humildes e vontade de cuspir nos poderosos. Mas não está nele comandar revoltas nem causar mudanças. Sabe que há outra Lei, muito maior que ele e maior que tudo e que possui desígnios insondáveis. Mas Chico sabe que a dicotomia poder-humildade está assentada sobre uma frágil construção.
- Chico, faz a voz do dromedário para dentro dele mesmo, é fácil transformar o humilde no poderoso. Não gaste suas lágrimas nem sua saliva. O que é poderoso hoje pode ser o humilde de amanhã e a recíproca também é verdadeira.
Chico sabe agora que seus motivos não devem ser nem os humildes nem os poderosos. Como concluiu o dromedário, ele deve meditar a respeito da Humildade sob o Poder.
Chico, então, cumprimenta cada corvo, gentilmente, um por um, bota os óculos de sol, sai da carcaça do dromedário morto, afaga-lhe a orelha esquerda num código de agradecimento e despedida, ajeita-se no carro e segue em frente.
Alguns quilômetros depois, sentindo a conhecida e violenta agitação interior, constata que seu corpo anda cheio de corvos desde priscas eras e que ele mesmo não passa de um dromedário, com uma loca no lombo. Aperta o acelerador e se endereça para as estradas nas montanhas desertas da Arábia, sinuosas como cinturas de Taiti, onde devem existir vergéis e cidades atraentes. Supõe-se...
(Letras da Arábia 10)
(Jeddah, Arábia Saudita, 08/1975)