A MOCINHA DA BALANÇA
Querido Diário:
Esta noite tenho boas novidades pra contar. Eu já lhe falei sobre a Festa da Uva : os carros alegóricos passam diante aqui de casa , Sinimbu 1951 - altos dos Correios e Telégrafos, onde moramos porque o papai é Agente , Tesoureiro , Telegrafista e deve estar disponível durante 24 horas por dia, sete dias por semana. Nunca tem tempo para ver o desfile completo mas com a Agfa que foi seu primeiro presente à mamãe , na Festa da Uva de 1932, quando começaram a namorar oficialmente, fotografou o carro em que eu estou e o do Esporte Clube Flamengo.
O corso dura várias horas - os carros se apresentam também na Avenida Júlio de Castilhos, onde vão por uma pista e voltam pela outra : não há como distinguir o firmamento da rua iluminada.
O entusiasmo das autoridades que nos visitam nessas épocas, para tudo assistir das duas sacadas do prédio, faz crer que não imaginam quanto atrapalham a vida da mamãe, que deve tomar conta de todos sem abandonar suas funções na Tesouraria !
O carro da Faculdade de Direito é absolutamente luxuoso : sobre uma longa superfície revestida de veludo vermelho com curvas de violino e extremidades em ponta, tem no fundo um diploma diante de uma beca e na frente um enorme símbolo dourado : um prato da balança cheio de moedas encosta no chão , o outro - que é meu lugar - sobe. Diante da espada as Tábuas da Lei rezam : DURA LEX SED LEX . Seu criador diz que sua mensagem é que a fortuna pesa mais que a sensibilidade e a vida.
Meu vestido é azul como o céu de um dia de primavera, de tecido tranparente que dança ao sabor da mais leve das aragens.
Eu mesma o bordei com pedrarias, aliás um dos meus poucos sucessos em trabalhos manuais.
Quando eu o comecei , papai adoeceu e eu o continuei apenas para agradá-lo pois tinha certeza de que não seria possível participar da Festa.
Nenhuma das colegas tem o peso adequado à balança e o sentido do carro se perderia se ela ficasse vazia. Então não desisti.
À noite descíamos as escadarias - papai entre a mamãe e eu, apoiado em nossos ombros e, enquanto sob nossos cuidados revisava os espessos protocolos de cada setor, com lágrimas de preocupação eu traçava no peito do meu vestido a magoada figura silenciosa da dúvida. O traje ficou lindo !
As pedrinhas de cristal derramam-se ao Sol e à Lua são vagalumes, secretamente nascidos do cetim azul dos sapatos de salto espelhado.
Quando me embalo no meu prato da balança , acariciam as flores de seda e as uvas de plástico que estão aos meus pés.
É não há uvas naturais nem flores verdadeiras: tudo é majestoso porém artificial !
Penso nas fotos da mamãe trajada de vindimeira , entre as jovens colaboradoras do Hospital Pompéia residentes na Rua Pinheiro Machado, seguindo a tradição de seus avós Giuseppe Bottini e Verginia Azzoni Bottini
com sua querida amiguinha Elisa Montanari , que viria a falecer no ano seguinte, sua prima Helena Bassanesi, Celira Cruz , Clari, Odila, entre outras. Aprecio seus bordados em seu avental, sua blusa , o ornamento dos cabelos : era a delicadeza das primeiras Festas, em 1931 e 1932, quando tudo era saborosamente perfumado de autenticidade.
Asjovens eram companheiras , amigas e confidentes , de uma vaidade ingênua , simples como o papel de seda com que coloriam suas faces , rosadas pétalas de flores, e seus lábios vermelhos como maçãs maduras acordando o respeitoso apetite dos fãs.
A Festa brotava no coração de cada um no ritmo em que a uva amadurecia.
Ontem, durante o último desfile noturno, ao passarmos pelo palanque oficial onde se encontrava o Presidente Marechal Arthur da Costa e Silva , abrimos uma faixa de todo o comprimento do carro onde grandes letras destacavam :
"Queremos a FEDERALIZAÇÃO da Universidade de Caxias do Sul."
Tendo em conta os fatos políticos de 13 de dezembro último, foi um ato ousado e houve quem não gostasse da idéia. De qualquer modo o fato estará para sempre registrado em muitos jornais do País.
Os turistas e repórteres aproximam-se rompendo todas as barreiras.
A televisão transmite tudo ao vivo.
Esta noite, diante das câmeras, olhei para a esquerda e sabe quem eu vi ?
Pois é, você sabe !
Ele estava dependurado na janela de seu escritório !
Como quando passou debaixo da minha sacada à meia-noite do Natal, atirou-me um beijo que enrubeceu até o meu espírito !
Confesso que embora não seja exatamente bonito faz bater meu coração.
Ao chegar em casa um gracioso ramalhete de trigo e flores me aguardava , na mesa redonda da sala, com um envelope assim endereçado : " À Mocinha da Balança". Sabe o que ele continha ? Você nem vai acreditar !
A minha própria fototografia no desfile anterior e um bilhete que diz :
" Desde que te vi te amo , desde o Natal muito mais , a Uva da Festa és Tu .
Beijos N.R. "
Você compreende, sem dúvida, minha felicidade e deposito entre suas páginas este momento mágico. Agora que já lhe contei minha emoção, você volta para a fransqueira azul-marinho chaveada , no fundo do armário. E eu vou adormecer meus sonhos num ninho de ternura como as doces vindimeiras das primeiras Festas da Uva. É tarde e o sono me venceu ! Querido Diário , Boa noite !
Caxias do Sul 8 de Março 23 h. 50 m.
Lia-Rosa Reuse