O incansável
Na opinião de K.:
O homem venceu há muito a escuridão; a noite não é mais capaz de paralisá-lo - só o homem pode se deter. A fragilidade que pode derrubá-lo reside nele mesmo: nada que lhe é alheio pode vencê-lo.
Ai daqueles que têm sono! Ai daqueles cujos olhos fecham de fadiga! Estes sucumbirão! Eu sucumbirei, sou um desses fracos, não posso negar.
Eu vi, no entanto, o homem invencível, aquele que prossegue, enquanto todos já pararam, aquele cuja força não se exaure nunca - eu vi o infatigável.
Não se trata de lenda ou exagero; esse homem existiu. Se visto por um breve momento, parecia um homem comum exercendo suas tarefas. Contudo, se observado por horas, dias, semanas ou meses, percebia-se seu poder, sua força, sua invencibilidade. É compreensível que não creiam no presente relato; no entanto, o que conto aqui é a mais pura verdade, e eu tenho como provar.
Conheci Rafael Norite, o incansável, numa empresa que produzia softwares, no centro do Rio; ele era diretor à época. Um amigo que trabalhava na empresa me enviou um e-mail avisando que eles estavam contratando. Como o salário era atraente e o projeto no qual eu trabalhava estava no fim (terminaria dali a duas semanas no máximo), eu arrisquei. Eu estava cansado da insegurança da vida de free-lancer; embora os ganhos não fossem baixos e a flexiblidade, maior (pelo menos em tese), eu corria o risco de ficar meses sem ser chamado para trabalhar, ou seja, meses sem receber nada.
Conseguir emprego em uma empresa, com carteira assinada e horário pré-estabelecido, tornou-se-me imperativo. Porque esse discurso de liberdade em relação a horários, de trabalhar em casa (ou onde quiser), é no fundo uma fantasia: o que acontece na realidade é que o desgaste é muito maior e a pessoa, em vez de ficar trancada em um escritório durante oitos horas, fica trancada em casa, quinze horas seguidas.
O fato é que arrisquei, mandei meu currículo, e acabou dando certo; fui contratado como programador depois de um rigoroso processo seletivo. A jornada era de oito horas e, caso fosse necessário trabalhar um pouco mais - o que acontecia raramente -, eles pagavam as horas extras - isso era ótimo. Quando se trabalha com projetos, contratação temporária, não existe horário de trabalho, tampouco horas extras: trabalha-se até entregar o projeto - se for necessário, para cumprir o prazo, até 16 horas em um dia -, pois nesses contratos não importa se a pessoa fica doente ou tem algum problema pessoal: há um prazo e o contratado deve cumpri-lo; não se lhe aplicam as leis trabalhistas.
Estava na empresa havia um mês e meio, aproximadamente, quando conheci Rafael Norite. Eu tinha sugerido uma alteração relevante em um programa, a fim de torná-lo mais resistente a invasões, e em razão dessa sugestão, fui chamado pelo infatigável. Fiquei tenso quando piscou na minha tela a mensagem enviada por ele (a comunicação interna era feita por mensagens escritas, em rede), convocando-me à sua sala dali a duas horas.
Já haviam me falado dele anteriormente; o próprio colega que me avisou do período de contratação já havia feito comentários sobre o diretor. A idéia que eu tinha dele era a de que ele era um homem recluso, misterioso, poderoso, distante e um tanto viciado em trabalho. Dizia a lenda que ele entrava e saía do prédio sem que ninguém o visse; era como se tivesse uma entrada exclusiva, a qual não permitia que os outros soubessem se ele estava ou não na empresa. Mas, a despeito da incerteza de sua presença física, ele era onipresente virtualmente.
Havia um ícone que acessávamos para saber quem estava ligado (logado): ao entrarmos nessa tela, apareciam pequenos quadrados (separados por setor), nos quais víamos as inicias de cada um dos funcionários. Se o quadrado estivesse cinza era sinal de que a pessoa não estava ligada; se estivesse amarelo, a pessoa estava lá, ligada, trabalhando, portanto (pelo menos em tese). O quadrado de Rafael Norite estava sempre amarelo. Alguns diziam que ele não ia à empresa – ligava-se e supervisionava o trabalho de casa, da rua, de onde estivesse com seu laptop. A hipótese era plausível, pois mesmo quando ocasionalmente eu saía um pouco mais tarde ou quando chegava mais cedo lá estava o quadrado do diretor brilhando amarelo-trabalho.
Era humanamente impossível alguém trabalhar tanto. Motivo por que alguns afirmavam que Norite apenas se mantinha ligado, mas não trabalhava todo o tempo (como muita gente fazia, aliás). No entanto, outra lenda que percorria os corredores da firma era a de que o big boss tinha acesso a tudo o que todos faziam a qualquer hora, ou seja, se algum empregado (e Norite era um empregado) ficasse logado sem nada fazer, isso seria facilmente constatado pelo presidente. Logo, como um diretor teria chegado até onde chegou e ali permanecido se ficasse apenas ligado, sem nada fazer?
Não, esses comentários não faziam sentido. Ele era diretor justamente porque se dedicava mais tempo à empresa, ao trabalho e quando ele me chamou isso foi confirmado, visto que eu fizera a sugestão havia pouquíssimo tempo; na verdade, eu tinha enviado a mensagem falando sobre a minha pretensão de alterar o sistema para o meu grupo de trabalho havia no máximo cinco minutos, quando piscou na minha tela o chamado de Norite.
Poderia ser uma coincidência. Pois um homem que supervisionava mais de cem pessoas agir com tanta rapidez era incrível. Pode ser que ele estivesse naquele exato momento em que enviei a mensagem (i. m., de intra-mensagem) ao grupo observando nosso trabalho; ou, o que também era muito provável, ele recebesse todas as mensagens de todos os postos de atuação; porém, nesse caso, também, era difícil crer que ele conseguisse ler tudo – pois a cada minuto, inúmeras i.m.s eram trocadas. Mais uma vez, a coincidência deveria estar presente: certamente, ele abria aleatoriamente algumas das missivas e as lia superficialmente; se, por acaso, encontrava algo relevante, se concentrava naquilo. Supus a princípio que fosse isso que tivesse acontecido.
O mais absurdo é que os meus companheiros de equipe ainda não haviam lido as minhas sugestões (sabia disso porque recebíamos os avisos de leitura assim que as i.m.s eram abertas), o que excluía a possibilidade de cogitar que um de meus colegas tivesse repassado ao diretor a minha i.m.
Assim que li a mensagem, o que fiz logo que ela piscou na minha tela, a respondi, informando que iria à sala do diretor na hora fixada. Aproveitei para analisar com mais cuidado o programa e as possíveis conseqüências da modificação recomendada por mim. Debrucei-me sobre o sistema e o testei várias vezes, a fim de me preparar para a reunião marcada com o supervisor.
Pedi ajuda a alguns colegas para descobrir onde de fato se localizava a sala de Norite; poucos sabiam. E os que diziam saber, divergiam sobre o andar e o corredor. Tal dissensão me causou certo espanto: como era possível que funcionários antigos, que já tinham visitado vez ou outra o gabinete do diretor, não soubessem onde ficava exatamente? Resolvi por isso indagar diretamente o diretor, que me informou imediatamente aonde eu deveria ir. Nenhum dos meus colegas sequer acertou o andar onde ele ficava, o que me levou a supor que ele talvez trocasse de sala com freqüência.
No horário estipulado bati à porta do diretor, que foi aberta logo em seguida. Ele permaneceu sentado – a porta abriu sozinha. Pareceu-me um homem gentil, pelo modo como se apresentou, pedindo que me sentasse. Em sua mesa havia cinco telas: quatro voltadas exclusivamente para ele e uma voltada para mim. Eu nunca o havia encontrado; bom, pelo menos, não me lembrava de sua fisionomia – mas pode ser que eu já tivesse andado no elevador com ele ou o visto em um dos corredores do prédio, visto que sua aparência era comum, não havia nele nenhum traço marcante; parecia um homem em torno dos quarenta e cinco anos, um pouco grisalho, moreno desbotado, um pouco acima do peso, sem barba.
Assim que me acomodei, a tela virada para mim ligou e ele começou a discorrer sobre a minha sugestão, sem contudo julgá-la; limitou-se a descrevê-la e compará-la com o modo original de funcionamento do programa. Eu, sentado, ouvia claramente sua explanação, mas não via o seu rosto (as telas impediam).
Eu escutava atento; prestava atenção de fato mas representava uma concentração ainda maior; não o interrompi - apenas acompanhei com os olhos e com leves movimentos de cabeça o que me era mostrado.
Ao fim da exposição de Norite, que tinha sido extremamente minuciosa e por isso mesmo extraordinária, ele me elogiou:
- Você está aqui há apenas um mês e meio e já se destaca. Isso é bom, isso é muito bom.
- Obrigado – respondi. – É o meu trabalho...
- Essa alteração quanto à segurança é muito interessante, na medida em que impedirá eventuais invasões (cada vez mais constantes). Você conseguiu erigir um muro, mais um muro, para proteger as informações. Segurança é a palavra-chave na criação de sistemas como esse, nos quais as pessoas que acessam, os usuários, devem ficar restritas a certos lugares. Justamente pela relevância da barreira que você idealizou, gostaria de lhe pedir que não comentasse com ninguém - nem de sua própria equipe.
- Tudo bem, mas acho que já é tarde demais, pois assim que fiz o projeto, enviei-o aos colegas de equipe.
- Eu tomei a liberdade de apagar suas i.m.s; assim que a li (ninguém as tinha aberto ainda), eu as apaguei, como se você mesmo as tivesse revogado. Não se preocupe com isso. Em se tratando de segurança, é melhor que os outros não saibam de todos as ferramentas usadas. O produto final deve ser inacessível até mesmo para aqueles que o projetaram.
- Compreendo. Não falarei nada a ninguém.
- Mas não foi só para isso que o chamei aqui; gostaria que você analisasse alguns sistemas e tentasse melhorar suas barreiras, como você fez nesse. Para tanto, vou reduzir sua participação na sua equipe de origem; mas peço que não também fale aos outros sobre isso. Eles não saberão dessas tarefas especiais que estou lhe passando.
- Tudo bem – respondi, demonstrando interesse. – O senhor quer algo semelhante ao que fiz nesse ou quer ser algo novo, completamente diferente?
- As duas coisas, na verdade. Aplique essa barreira e tente criar outras também. Disponibilizarei os programas na rede exclusivamente para você; peço que não os grave no seu computador; trabalhe somente na rede e grave as eventuais alterações na mesma pasta da rede, acrescentado ao nome do arquivo a data e a hora da modificação.
- Sim. Farei assim.
- Bom, por enquanto é só isso. Mas volto a falar com você sobre esses outros sistemas. Até logo.
Despedi-me e sai. Havia sido uma conversa rápida, mas eu ficara marcado. A forma como o diretor se expressou, a sua objetividade, a constância do tom de voz, bem como as características da sala onde se instalava me causaram uma impressão peculiar. Eu, que já nutria certa curiosidade sobre aquele homem, fiquei ainda mais intrigado.
Tentei colher mais informações sobre ele, sem contudo demonstrar que o fazia. Formulava perguntas ocasionais a pessoas diferentes e tentava levar o diálogo até o diretor, seguindo por caminhos transversos, indiretos, incitando os colegas a falar sobre ele. Perguntava sobre o presidente, sobre a formação da empresa, sobre sua estrutura, hierarquia, como conseguir promoções etc.
E, para minha surpresa, as informações que eu conseguia nunca eram claras e convergentes. Tive a impressão de que a administração da empresa era um jogo cujas regras se alteravam constantemente, e, apesar disso, os jogadores não se abalavam; antes, se adaptavam e jogavam de acordo com as novas determinações. Na verdade, parecia não haver indagações sólidas quanto às regras, como se elas fossem no fim das contas irrelevantes.
Apenas uma informação parecia plausível pois convergente. Todos concordavam que Rafael Norite era uma figura onipresente. Não importava a hora, nem o dia, tampouco a tarefa – todos pareciam admitir que o diretor estava a par de tudo, por mais assombroso que isso pudesse ser.
Debrucei-me sobre os programas que Norite disponibilizou para mim; eram complexos e estavam divididos, fragmentados. Eu, que erigia novas paredes a fim de protegê-los, esbarrava noutras paredes; e não poderia dizer para que serviam aqueles sistemas, pois o diretor só havia permitido que eu acessasse parte deles.
Obviamente, entendi que por motivos de segurança muitos deveriam trabalhar naqueles sistemas, como eu agora trabalhava, porém apenas o diretor (talvez nem ele) pudesse observar o resultado final de todos os projetos. Bom, alguém tinha que organizar o sistema, juntar os pedaços forjados separadamente – alguém deveria encaixar as peças. Talvez Norite fosse o responsável.
Não consegui, contudo, fazer grandes alterações nos sistemas que o diretor colocou na rede. Trabalhei arduamente, mas pouco avancei. Mesmo assim, depois de umas três semanas, Norite me chamou mais uma vez à sua sala, que dessa vez estava noutro lugar (ele informou a localização ma própria i.m. de convocação).
Nesse encontro ele falou menos. Embora ele tenha elogiado as pequenas alterações que consegui implantar nos programas, tive a impressão que ele estava insatisfeito. Ainda assim, ele falou que o meu salário iria aumentar e que eu passaria a trabalhar com outra equipe, noutro andar e que o foco seria a criação medidas de proteção em sistemas. Dispensou-me em seguida, dizendo que os detalhes seriam enviados por i.m.
No dia seguinte eu já estava no outro setor, com uma nova equipe. Como na outra equipe, há uma separação física entre os membros, que ficam em salas diversas; a união, a formação do grupo é exclusivamente virtual. Os membros interagem entre si por meio da rede – não há encontros físicos. Isso não impedia que nos apresentássemos uns aos outros, mas na verdade eu acabava tendo mais contato com as pessoas que, embora não fizessem parte da minha equipe, trabalhavam perto de mim, fisicamente.
E foi assim que fiz amizade com o Bruno, que trabalhava numa cela próxima a minha. Não lembro porque começamos a conversar, mas creio que foi em razão de uma i.m. coletiva (enviada a todos os programadores); um de nós fez um comentário – quase que falando sozinho – e o outro respondeu. Acho que foi isso.
O interessante é que Bruno foi capaz de elucidar muitas de minhas dúvidas. Ele havia gerenciado um setor durante um período e portanto sabia bastante sobre Norite. Disse-me que quando começou a gerenciar o setor e ficar mais próximo do diretor, chegou a pensar que Norite não era só um mas várias homens, que administravam um avatar-chefe (diretor); o que o levou a pensar isso foi sua onipresença.
Segundo Bruno, Norite observava seu trabalho de perto, enviando i.m.s com freqüência espantosa, bem como era capaz de quase ao mesmo tempo, analisar as tarefas de outros membros do setor, também remetendo i.m.s.
- Achei que várias pessoas, sob um mesmo avatar, inspecionavam o trabalho; pois não havia como um só homem controlar tudo daquela forma. – disse Bruno.
- Só o fato de ele estar sempre ligado já causa essa impressão – respondi.
- Mas o fato é que só ele o faz; tenho quase certeza disso. A maneira pela qual ele se expressa é sempre a mesma, e ele é capaz de fazer reuniões com diversas pessoas, de diversos setores, no mesmo dia. Por acaso descobri que na mesma tarde em que eu e o diretor conversamos, ele também falou com mais quatro funcionários. Descobri isso casualmente pois, ao comentar com um colega sobre a minha reunião, ele me disse que ele e outros dois conhecidos, de outros setores, também haviam sido convocado por Norite.
Na verdade, Bruno descobriu com o tempo - e essa sem dúvida foi a maior revelação – que Rafael Norite nunca descansava. Achei que fosse apenas uma hipérbole. Como um homem pode trabalhar sempre, sem dormir, sem relaxar, sem se desligar? Sabia que o diretor trabalhava muito, mas não admitia que alguém fosse capaz de ficar sem descansar.
No entanto, Bruno insistia no tema e o modo como falava não era o de alguém que está simplesmente exagerando. E quando ele percebeu que eu não o levava a sério, disse-me que Norite nunca se desligava, mesmo. “Ele nunca dorme,” afirmava Bruno, “ele nunca descansa.”
Embora não acreditasse na lenda de que Norite nunca descansava, como minha curiosidade já era grande, resolvi investigar por mim mesmo; queria também provar que Bruno estava errado. Para tanto, além de indagar colegas sobre o assunto (disfarçadamente, é claro), tentei provocar, por meio do trabalho, a atenção do diretor; tentei aproximar-me dele.
Meu plano surtiu efeito. Dentro de um mês, Norite havia me chamado mais três vezes à sua sala (cujo local havia mudado novamente). Como me dediquei muito para chamar a atenção dele, passei do horário muitas vezes e comprovei que ele estava sempre lá, ligado, atento, trabalhando.
A aproximação rendeu frutos. O diretor abriu espaço (implicitamente) para que eu o procurasse, para que eu o contatasse via i.m.s diretamente. Eu, obviamente, utilizei-me do recurso, com parcimônia, mas eficácia. Procurei enviar-lhe mensagens em horários inusitados e para minha surpresa elas eram sempre imediatamente respondidas; e não eram resposta simples, pré-formuladas; eram respostas robustas, tecnicamente perfeitas.
Eu, que a princípio quis refutar a teoria de Bruno sobre a rotina meta-humana de Norite, acabei colhendo provas de que o diretor realmente nunca se cansava, nunca parava de trabalhar.
Rafael Norite, acreditem ou não, era infatigável. Ele talvez fosse um milagre da evolução; talvez amanhã nossos filhos sejam como ele – insuperáveis, invulneráveis, inexpugnáveis.
Não tenho mais notícias do incansável. Ele foi transferido há alguns anos para a sede da empresa e eu recebi uma proposta irrecusável para trabalhar numa firma concorrente; nunca me esquecerei, entretanto, de Norite.
Na opinião de D.:
Encontrei o relato acima na gaveta da minha mesa, assim que comecei a trabalhar numa empresa de softwares, já citada aí em cima.
Bom, não conheci o tal Rafael Norite, mas quando li esse relato, me meti a procurar informações sobre o tal incansável. E, depois de descobrir um bocado de cosias sobre o ex-diretor, resolvi fazer uns comentários.
Não tenho o estilo pomposo do autor do primeiro relato, mas acho que isso não é importante. Talvez, seja até melhor o meu estilo. E o que é a erudição, a forma, diante da verdade? O que quero deixar claro é que embora eu escreva de um modo bem mais simples acho que estou mais perto da verdade.
Não o conheci pessoalmente, mas conversei com muita gente que o conheceu, que conviveu com ele aqui na firma. Ele era muito bom mesmo, segundo a opinião geral. E por mais incrível que possa parecer pelo que diz o pessoal o tal diretor vivia pra empresa, não tinha vida própria e aparentemente não dormia, estava sempre ligado. O cara era incansável mesmo.
Reza a lenda que ele migrava sempre, trocava de sala quase que semanalmente e só era encontrado por quem e quando queria, no mundo físico. Porque no mundo virtual, ele estava a um click de qualquer um.
A minha discordância quanto ao primeiro relato é sobre a supercapacidade que se atribui a Norite. O cara era muito bom executando ordens, controlando funcionários, observando o que os outros criavam e analisando tecnicamente os programas. E isso sem dúvida é muito útil para uma empresa, principalmente se essa figura trabalha 24 horas por dia e sete dias por semana!
Mas ninguém falou sobre uma criação sequer do tal “meta-homem!” Ele observava, analisava, era rápido, mas NÃO CRIAVA. Nem aqui nem em qualquer outro lugar, pois, como se sabe, não tinha outra vida senão a profissional.
Conversei com um homem (cujo nome não divulgarei pra evitar possíveis perseguições) que me disse que Norite às vezes tentava criar jogos em linguagem ultrapassada, mas nem isso conseguia.
Se a evolução for Norite, estamos ferrados! Prefiro ser um dorminhoco criativo a ser um técnico incansável. Se o mundo ficar cheio de Norites, nada será inventado. Tudo será apenas supervisionado, analisado com rigor técnico.
Talvez esse ex-diretor seja uma involução. Tomara que ele não tenha vida pessoal mesmo, pois seria um risco ele espalhar genes assim. Pra falar a verdade, melhor que ele nem existisse, que fossem vários homens sob um avatar-diretor, porque uma pessoa assim é um citra-homem e não um ultra-homem ou meta-homem. Sendo mais claro: um cara desse não é humano. Não porque nos ultrapassou, mas porque está abaixo de nós.
Vivam aqueles que têm cansaço! Vivam aqueles que tem sono! Vivam aqueles que dormem! Vivam aqueles que criam!
Posfácio
Encontrei os dois relatos na minha gaveta. Não vou me identificar. Informo também que troquei os nomes das pessoas acima, para resguardá-las. Pensei em empreender uma nova pesquisa sobre o tal infatigável. Todavia, conclui que seria perda de tempo. Resolvi abrir a gaveta, deixar que a luz penetrasse nela.
Chega de páginas recolhidas, escondidas, cerradas na escuridão. Se quiser encarar os relatos como ficção, fique à vontade. O fato é que os encontrei na minha gaveta quando comecei a trabalhar numa empresa de softwares no centro do Rio.
O homem venceu há muito a escuridão; a noite não é mais capaz de paralisá-lo - só o homem pode se deter. A fragilidade que pode derrubá-lo reside nele mesmo: nada que lhe é alheio pode vencê-lo.
Ai daqueles que têm sono! Ai daqueles cujos olhos fecham de fadiga! Estes sucumbirão! Eu sucumbirei, sou um desses fracos, não posso negar.
Eu vi, no entanto, o homem invencível, aquele que prossegue, enquanto todos já pararam, aquele cuja força não se exaure nunca - eu vi o infatigável.
Não se trata de lenda ou exagero; esse homem existiu. Se visto por um breve momento, parecia um homem comum exercendo suas tarefas. Contudo, se observado por horas, dias, semanas ou meses, percebia-se seu poder, sua força, sua invencibilidade. É compreensível que não creiam no presente relato; no entanto, o que conto aqui é a mais pura verdade, e eu tenho como provar.
Conheci Rafael Norite, o incansável, numa empresa que produzia softwares, no centro do Rio; ele era diretor à época. Um amigo que trabalhava na empresa me enviou um e-mail avisando que eles estavam contratando. Como o salário era atraente e o projeto no qual eu trabalhava estava no fim (terminaria dali a duas semanas no máximo), eu arrisquei. Eu estava cansado da insegurança da vida de free-lancer; embora os ganhos não fossem baixos e a flexiblidade, maior (pelo menos em tese), eu corria o risco de ficar meses sem ser chamado para trabalhar, ou seja, meses sem receber nada.
Conseguir emprego em uma empresa, com carteira assinada e horário pré-estabelecido, tornou-se-me imperativo. Porque esse discurso de liberdade em relação a horários, de trabalhar em casa (ou onde quiser), é no fundo uma fantasia: o que acontece na realidade é que o desgaste é muito maior e a pessoa, em vez de ficar trancada em um escritório durante oitos horas, fica trancada em casa, quinze horas seguidas.
O fato é que arrisquei, mandei meu currículo, e acabou dando certo; fui contratado como programador depois de um rigoroso processo seletivo. A jornada era de oito horas e, caso fosse necessário trabalhar um pouco mais - o que acontecia raramente -, eles pagavam as horas extras - isso era ótimo. Quando se trabalha com projetos, contratação temporária, não existe horário de trabalho, tampouco horas extras: trabalha-se até entregar o projeto - se for necessário, para cumprir o prazo, até 16 horas em um dia -, pois nesses contratos não importa se a pessoa fica doente ou tem algum problema pessoal: há um prazo e o contratado deve cumpri-lo; não se lhe aplicam as leis trabalhistas.
Estava na empresa havia um mês e meio, aproximadamente, quando conheci Rafael Norite. Eu tinha sugerido uma alteração relevante em um programa, a fim de torná-lo mais resistente a invasões, e em razão dessa sugestão, fui chamado pelo infatigável. Fiquei tenso quando piscou na minha tela a mensagem enviada por ele (a comunicação interna era feita por mensagens escritas, em rede), convocando-me à sua sala dali a duas horas.
Já haviam me falado dele anteriormente; o próprio colega que me avisou do período de contratação já havia feito comentários sobre o diretor. A idéia que eu tinha dele era a de que ele era um homem recluso, misterioso, poderoso, distante e um tanto viciado em trabalho. Dizia a lenda que ele entrava e saía do prédio sem que ninguém o visse; era como se tivesse uma entrada exclusiva, a qual não permitia que os outros soubessem se ele estava ou não na empresa. Mas, a despeito da incerteza de sua presença física, ele era onipresente virtualmente.
Havia um ícone que acessávamos para saber quem estava ligado (logado): ao entrarmos nessa tela, apareciam pequenos quadrados (separados por setor), nos quais víamos as inicias de cada um dos funcionários. Se o quadrado estivesse cinza era sinal de que a pessoa não estava ligada; se estivesse amarelo, a pessoa estava lá, ligada, trabalhando, portanto (pelo menos em tese). O quadrado de Rafael Norite estava sempre amarelo. Alguns diziam que ele não ia à empresa – ligava-se e supervisionava o trabalho de casa, da rua, de onde estivesse com seu laptop. A hipótese era plausível, pois mesmo quando ocasionalmente eu saía um pouco mais tarde ou quando chegava mais cedo lá estava o quadrado do diretor brilhando amarelo-trabalho.
Era humanamente impossível alguém trabalhar tanto. Motivo por que alguns afirmavam que Norite apenas se mantinha ligado, mas não trabalhava todo o tempo (como muita gente fazia, aliás). No entanto, outra lenda que percorria os corredores da firma era a de que o big boss tinha acesso a tudo o que todos faziam a qualquer hora, ou seja, se algum empregado (e Norite era um empregado) ficasse logado sem nada fazer, isso seria facilmente constatado pelo presidente. Logo, como um diretor teria chegado até onde chegou e ali permanecido se ficasse apenas ligado, sem nada fazer?
Não, esses comentários não faziam sentido. Ele era diretor justamente porque se dedicava mais tempo à empresa, ao trabalho e quando ele me chamou isso foi confirmado, visto que eu fizera a sugestão havia pouquíssimo tempo; na verdade, eu tinha enviado a mensagem falando sobre a minha pretensão de alterar o sistema para o meu grupo de trabalho havia no máximo cinco minutos, quando piscou na minha tela o chamado de Norite.
Poderia ser uma coincidência. Pois um homem que supervisionava mais de cem pessoas agir com tanta rapidez era incrível. Pode ser que ele estivesse naquele exato momento em que enviei a mensagem (i. m., de intra-mensagem) ao grupo observando nosso trabalho; ou, o que também era muito provável, ele recebesse todas as mensagens de todos os postos de atuação; porém, nesse caso, também, era difícil crer que ele conseguisse ler tudo – pois a cada minuto, inúmeras i.m.s eram trocadas. Mais uma vez, a coincidência deveria estar presente: certamente, ele abria aleatoriamente algumas das missivas e as lia superficialmente; se, por acaso, encontrava algo relevante, se concentrava naquilo. Supus a princípio que fosse isso que tivesse acontecido.
O mais absurdo é que os meus companheiros de equipe ainda não haviam lido as minhas sugestões (sabia disso porque recebíamos os avisos de leitura assim que as i.m.s eram abertas), o que excluía a possibilidade de cogitar que um de meus colegas tivesse repassado ao diretor a minha i.m.
Assim que li a mensagem, o que fiz logo que ela piscou na minha tela, a respondi, informando que iria à sala do diretor na hora fixada. Aproveitei para analisar com mais cuidado o programa e as possíveis conseqüências da modificação recomendada por mim. Debrucei-me sobre o sistema e o testei várias vezes, a fim de me preparar para a reunião marcada com o supervisor.
Pedi ajuda a alguns colegas para descobrir onde de fato se localizava a sala de Norite; poucos sabiam. E os que diziam saber, divergiam sobre o andar e o corredor. Tal dissensão me causou certo espanto: como era possível que funcionários antigos, que já tinham visitado vez ou outra o gabinete do diretor, não soubessem onde ficava exatamente? Resolvi por isso indagar diretamente o diretor, que me informou imediatamente aonde eu deveria ir. Nenhum dos meus colegas sequer acertou o andar onde ele ficava, o que me levou a supor que ele talvez trocasse de sala com freqüência.
No horário estipulado bati à porta do diretor, que foi aberta logo em seguida. Ele permaneceu sentado – a porta abriu sozinha. Pareceu-me um homem gentil, pelo modo como se apresentou, pedindo que me sentasse. Em sua mesa havia cinco telas: quatro voltadas exclusivamente para ele e uma voltada para mim. Eu nunca o havia encontrado; bom, pelo menos, não me lembrava de sua fisionomia – mas pode ser que eu já tivesse andado no elevador com ele ou o visto em um dos corredores do prédio, visto que sua aparência era comum, não havia nele nenhum traço marcante; parecia um homem em torno dos quarenta e cinco anos, um pouco grisalho, moreno desbotado, um pouco acima do peso, sem barba.
Assim que me acomodei, a tela virada para mim ligou e ele começou a discorrer sobre a minha sugestão, sem contudo julgá-la; limitou-se a descrevê-la e compará-la com o modo original de funcionamento do programa. Eu, sentado, ouvia claramente sua explanação, mas não via o seu rosto (as telas impediam).
Eu escutava atento; prestava atenção de fato mas representava uma concentração ainda maior; não o interrompi - apenas acompanhei com os olhos e com leves movimentos de cabeça o que me era mostrado.
Ao fim da exposição de Norite, que tinha sido extremamente minuciosa e por isso mesmo extraordinária, ele me elogiou:
- Você está aqui há apenas um mês e meio e já se destaca. Isso é bom, isso é muito bom.
- Obrigado – respondi. – É o meu trabalho...
- Essa alteração quanto à segurança é muito interessante, na medida em que impedirá eventuais invasões (cada vez mais constantes). Você conseguiu erigir um muro, mais um muro, para proteger as informações. Segurança é a palavra-chave na criação de sistemas como esse, nos quais as pessoas que acessam, os usuários, devem ficar restritas a certos lugares. Justamente pela relevância da barreira que você idealizou, gostaria de lhe pedir que não comentasse com ninguém - nem de sua própria equipe.
- Tudo bem, mas acho que já é tarde demais, pois assim que fiz o projeto, enviei-o aos colegas de equipe.
- Eu tomei a liberdade de apagar suas i.m.s; assim que a li (ninguém as tinha aberto ainda), eu as apaguei, como se você mesmo as tivesse revogado. Não se preocupe com isso. Em se tratando de segurança, é melhor que os outros não saibam de todos as ferramentas usadas. O produto final deve ser inacessível até mesmo para aqueles que o projetaram.
- Compreendo. Não falarei nada a ninguém.
- Mas não foi só para isso que o chamei aqui; gostaria que você analisasse alguns sistemas e tentasse melhorar suas barreiras, como você fez nesse. Para tanto, vou reduzir sua participação na sua equipe de origem; mas peço que não também fale aos outros sobre isso. Eles não saberão dessas tarefas especiais que estou lhe passando.
- Tudo bem – respondi, demonstrando interesse. – O senhor quer algo semelhante ao que fiz nesse ou quer ser algo novo, completamente diferente?
- As duas coisas, na verdade. Aplique essa barreira e tente criar outras também. Disponibilizarei os programas na rede exclusivamente para você; peço que não os grave no seu computador; trabalhe somente na rede e grave as eventuais alterações na mesma pasta da rede, acrescentado ao nome do arquivo a data e a hora da modificação.
- Sim. Farei assim.
- Bom, por enquanto é só isso. Mas volto a falar com você sobre esses outros sistemas. Até logo.
Despedi-me e sai. Havia sido uma conversa rápida, mas eu ficara marcado. A forma como o diretor se expressou, a sua objetividade, a constância do tom de voz, bem como as características da sala onde se instalava me causaram uma impressão peculiar. Eu, que já nutria certa curiosidade sobre aquele homem, fiquei ainda mais intrigado.
Tentei colher mais informações sobre ele, sem contudo demonstrar que o fazia. Formulava perguntas ocasionais a pessoas diferentes e tentava levar o diálogo até o diretor, seguindo por caminhos transversos, indiretos, incitando os colegas a falar sobre ele. Perguntava sobre o presidente, sobre a formação da empresa, sobre sua estrutura, hierarquia, como conseguir promoções etc.
E, para minha surpresa, as informações que eu conseguia nunca eram claras e convergentes. Tive a impressão de que a administração da empresa era um jogo cujas regras se alteravam constantemente, e, apesar disso, os jogadores não se abalavam; antes, se adaptavam e jogavam de acordo com as novas determinações. Na verdade, parecia não haver indagações sólidas quanto às regras, como se elas fossem no fim das contas irrelevantes.
Apenas uma informação parecia plausível pois convergente. Todos concordavam que Rafael Norite era uma figura onipresente. Não importava a hora, nem o dia, tampouco a tarefa – todos pareciam admitir que o diretor estava a par de tudo, por mais assombroso que isso pudesse ser.
Debrucei-me sobre os programas que Norite disponibilizou para mim; eram complexos e estavam divididos, fragmentados. Eu, que erigia novas paredes a fim de protegê-los, esbarrava noutras paredes; e não poderia dizer para que serviam aqueles sistemas, pois o diretor só havia permitido que eu acessasse parte deles.
Obviamente, entendi que por motivos de segurança muitos deveriam trabalhar naqueles sistemas, como eu agora trabalhava, porém apenas o diretor (talvez nem ele) pudesse observar o resultado final de todos os projetos. Bom, alguém tinha que organizar o sistema, juntar os pedaços forjados separadamente – alguém deveria encaixar as peças. Talvez Norite fosse o responsável.
Não consegui, contudo, fazer grandes alterações nos sistemas que o diretor colocou na rede. Trabalhei arduamente, mas pouco avancei. Mesmo assim, depois de umas três semanas, Norite me chamou mais uma vez à sua sala, que dessa vez estava noutro lugar (ele informou a localização ma própria i.m. de convocação).
Nesse encontro ele falou menos. Embora ele tenha elogiado as pequenas alterações que consegui implantar nos programas, tive a impressão que ele estava insatisfeito. Ainda assim, ele falou que o meu salário iria aumentar e que eu passaria a trabalhar com outra equipe, noutro andar e que o foco seria a criação medidas de proteção em sistemas. Dispensou-me em seguida, dizendo que os detalhes seriam enviados por i.m.
No dia seguinte eu já estava no outro setor, com uma nova equipe. Como na outra equipe, há uma separação física entre os membros, que ficam em salas diversas; a união, a formação do grupo é exclusivamente virtual. Os membros interagem entre si por meio da rede – não há encontros físicos. Isso não impedia que nos apresentássemos uns aos outros, mas na verdade eu acabava tendo mais contato com as pessoas que, embora não fizessem parte da minha equipe, trabalhavam perto de mim, fisicamente.
E foi assim que fiz amizade com o Bruno, que trabalhava numa cela próxima a minha. Não lembro porque começamos a conversar, mas creio que foi em razão de uma i.m. coletiva (enviada a todos os programadores); um de nós fez um comentário – quase que falando sozinho – e o outro respondeu. Acho que foi isso.
O interessante é que Bruno foi capaz de elucidar muitas de minhas dúvidas. Ele havia gerenciado um setor durante um período e portanto sabia bastante sobre Norite. Disse-me que quando começou a gerenciar o setor e ficar mais próximo do diretor, chegou a pensar que Norite não era só um mas várias homens, que administravam um avatar-chefe (diretor); o que o levou a pensar isso foi sua onipresença.
Segundo Bruno, Norite observava seu trabalho de perto, enviando i.m.s com freqüência espantosa, bem como era capaz de quase ao mesmo tempo, analisar as tarefas de outros membros do setor, também remetendo i.m.s.
- Achei que várias pessoas, sob um mesmo avatar, inspecionavam o trabalho; pois não havia como um só homem controlar tudo daquela forma. – disse Bruno.
- Só o fato de ele estar sempre ligado já causa essa impressão – respondi.
- Mas o fato é que só ele o faz; tenho quase certeza disso. A maneira pela qual ele se expressa é sempre a mesma, e ele é capaz de fazer reuniões com diversas pessoas, de diversos setores, no mesmo dia. Por acaso descobri que na mesma tarde em que eu e o diretor conversamos, ele também falou com mais quatro funcionários. Descobri isso casualmente pois, ao comentar com um colega sobre a minha reunião, ele me disse que ele e outros dois conhecidos, de outros setores, também haviam sido convocado por Norite.
Na verdade, Bruno descobriu com o tempo - e essa sem dúvida foi a maior revelação – que Rafael Norite nunca descansava. Achei que fosse apenas uma hipérbole. Como um homem pode trabalhar sempre, sem dormir, sem relaxar, sem se desligar? Sabia que o diretor trabalhava muito, mas não admitia que alguém fosse capaz de ficar sem descansar.
No entanto, Bruno insistia no tema e o modo como falava não era o de alguém que está simplesmente exagerando. E quando ele percebeu que eu não o levava a sério, disse-me que Norite nunca se desligava, mesmo. “Ele nunca dorme,” afirmava Bruno, “ele nunca descansa.”
Embora não acreditasse na lenda de que Norite nunca descansava, como minha curiosidade já era grande, resolvi investigar por mim mesmo; queria também provar que Bruno estava errado. Para tanto, além de indagar colegas sobre o assunto (disfarçadamente, é claro), tentei provocar, por meio do trabalho, a atenção do diretor; tentei aproximar-me dele.
Meu plano surtiu efeito. Dentro de um mês, Norite havia me chamado mais três vezes à sua sala (cujo local havia mudado novamente). Como me dediquei muito para chamar a atenção dele, passei do horário muitas vezes e comprovei que ele estava sempre lá, ligado, atento, trabalhando.
A aproximação rendeu frutos. O diretor abriu espaço (implicitamente) para que eu o procurasse, para que eu o contatasse via i.m.s diretamente. Eu, obviamente, utilizei-me do recurso, com parcimônia, mas eficácia. Procurei enviar-lhe mensagens em horários inusitados e para minha surpresa elas eram sempre imediatamente respondidas; e não eram resposta simples, pré-formuladas; eram respostas robustas, tecnicamente perfeitas.
Eu, que a princípio quis refutar a teoria de Bruno sobre a rotina meta-humana de Norite, acabei colhendo provas de que o diretor realmente nunca se cansava, nunca parava de trabalhar.
Rafael Norite, acreditem ou não, era infatigável. Ele talvez fosse um milagre da evolução; talvez amanhã nossos filhos sejam como ele – insuperáveis, invulneráveis, inexpugnáveis.
Não tenho mais notícias do incansável. Ele foi transferido há alguns anos para a sede da empresa e eu recebi uma proposta irrecusável para trabalhar numa firma concorrente; nunca me esquecerei, entretanto, de Norite.
Na opinião de D.:
Encontrei o relato acima na gaveta da minha mesa, assim que comecei a trabalhar numa empresa de softwares, já citada aí em cima.
Bom, não conheci o tal Rafael Norite, mas quando li esse relato, me meti a procurar informações sobre o tal incansável. E, depois de descobrir um bocado de cosias sobre o ex-diretor, resolvi fazer uns comentários.
Não tenho o estilo pomposo do autor do primeiro relato, mas acho que isso não é importante. Talvez, seja até melhor o meu estilo. E o que é a erudição, a forma, diante da verdade? O que quero deixar claro é que embora eu escreva de um modo bem mais simples acho que estou mais perto da verdade.
Não o conheci pessoalmente, mas conversei com muita gente que o conheceu, que conviveu com ele aqui na firma. Ele era muito bom mesmo, segundo a opinião geral. E por mais incrível que possa parecer pelo que diz o pessoal o tal diretor vivia pra empresa, não tinha vida própria e aparentemente não dormia, estava sempre ligado. O cara era incansável mesmo.
Reza a lenda que ele migrava sempre, trocava de sala quase que semanalmente e só era encontrado por quem e quando queria, no mundo físico. Porque no mundo virtual, ele estava a um click de qualquer um.
A minha discordância quanto ao primeiro relato é sobre a supercapacidade que se atribui a Norite. O cara era muito bom executando ordens, controlando funcionários, observando o que os outros criavam e analisando tecnicamente os programas. E isso sem dúvida é muito útil para uma empresa, principalmente se essa figura trabalha 24 horas por dia e sete dias por semana!
Mas ninguém falou sobre uma criação sequer do tal “meta-homem!” Ele observava, analisava, era rápido, mas NÃO CRIAVA. Nem aqui nem em qualquer outro lugar, pois, como se sabe, não tinha outra vida senão a profissional.
Conversei com um homem (cujo nome não divulgarei pra evitar possíveis perseguições) que me disse que Norite às vezes tentava criar jogos em linguagem ultrapassada, mas nem isso conseguia.
Se a evolução for Norite, estamos ferrados! Prefiro ser um dorminhoco criativo a ser um técnico incansável. Se o mundo ficar cheio de Norites, nada será inventado. Tudo será apenas supervisionado, analisado com rigor técnico.
Talvez esse ex-diretor seja uma involução. Tomara que ele não tenha vida pessoal mesmo, pois seria um risco ele espalhar genes assim. Pra falar a verdade, melhor que ele nem existisse, que fossem vários homens sob um avatar-diretor, porque uma pessoa assim é um citra-homem e não um ultra-homem ou meta-homem. Sendo mais claro: um cara desse não é humano. Não porque nos ultrapassou, mas porque está abaixo de nós.
Vivam aqueles que têm cansaço! Vivam aqueles que tem sono! Vivam aqueles que dormem! Vivam aqueles que criam!
Posfácio
Encontrei os dois relatos na minha gaveta. Não vou me identificar. Informo também que troquei os nomes das pessoas acima, para resguardá-las. Pensei em empreender uma nova pesquisa sobre o tal infatigável. Todavia, conclui que seria perda de tempo. Resolvi abrir a gaveta, deixar que a luz penetrasse nela.
Chega de páginas recolhidas, escondidas, cerradas na escuridão. Se quiser encarar os relatos como ficção, fique à vontade. O fato é que os encontrei na minha gaveta quando comecei a trabalhar numa empresa de softwares no centro do Rio.