um estado de coisas
Seu nome ainda, ainda aqui na platibanda do presente, anos ali, os olhos, a boca, o tédio, a angústia que se desembocava em cada segundo sucessivo, a inquietação que impregnava o cotidiano. Ás vezes algo despertava, um sorriso fora do estilo, do fingimento casual , uma janela aberta que nos expunham ao sol, acordar cedo, o trabalho, o banho morno, a cidade esperando com sua carga de dor e surpresa, e a névoa da inconsciência que novamente retornava, a cada um do seu jeito, no ponto fraco, que ressoava nos andares de terror e escuridão.
O andar, a lentidão da espera, o trem sempre menos feroz a que nossa paciência, a volta noturna, o tempo que nos espreita com todos os seus modos de desagrados, o dia fastigioso posto em discursos, abrilhantado por jogos misteriosos de palavras, de novo o banho, de novo a cama ainda desarrumada, a ponta do lençol no chão, a lerdeza dos acontecimentos significativos , e ela ali, com os pés sobre o centro e o vácuo de uma vida que já não era.
Ela nunca soube fingir, nunca se deu mais do que a vontade, dois meses, talvez três, o resto? o esforço, a carga, a obrigação legal, o rio sem movimento, o lado afetado por muitas bifurcações, o sono que não protege e não nutre, o levantar, o abrir da garrafa, acender um cigarro, folhear o passado a procura do momento ingrato, um copo, o gole, a garganta queimando, a cidade lá fora que será vista no amanhã.
A maior parte do mundo continua em sua máquina lógica na hora do descanso. O dormir de cansaço e não de sono, o beijo pela manhã, o trem que demora, o trem sempre demora mais que o normal. O trabalho, tantos rostos e a mesma face desenganada, o desprezo latente em cada olhar, os corpos falando diferentes das palavras, as falsas alegrias, as falsas vidas se rebobinando e se tornando mais artificiosas e mais abomináveis. Muitos pontos de vistas, mas a mesma queda, a mesma vida que grita com a sua engrenagem , o tempo como uma pasta que não passa, os segundos que se impõem como horas, como dias, como vidas, como elásticos que levam o faz de conta a enormidades.
Que sentido se tem quando a implosão já aconteceu, a guerra já explodiu e os corpo flutuavam no oceano da mesma solidão? E as frases, tantas, as palavras, tantas, navegam sem importância, e nem nos interessava quem primeiro as proferiu, sempre estiveram marcadas pelo desvio, pela incredulidade, pelo erro.
O desespero, a ausência de piso firme, da frase verdadeira, do homem que saberia o segredo , nada há pra salvar, nada há pra nos salvar, o retorno, o trem novamente, agora mais cheio, trabalhadores e estudantes, dois tipos, dois modos que se diferenciam pelos entusiasmos distintos, alguns que simplesmente existem e tem ainda o sonho como aliado, o outro grupo, talvez tenha pisado o chão da realidade, sabe que amanhã será como hoje, o labuta infinita para trazer o pão, para se dar em troca de casa e comida e simplesmente alimentar a boca de um monstro invencível, todos alimentados o monstro invencível. A casa avistada no fim da rua , a rua próxima da casa, os postes que mal iluminavam e pouco iluminavam , o corpo quase emborcado mais pelo o mesmo do que pelo cansaço, outra noite de perguntas, outra noite sem respostas,
Foi então que finalmente ela disse, não disse como imaginava, disse com as malas arrumadas , com a passagem comprada, com a satisfação de ter conseguido, finalmente via em seu rosto a liberdade, a imaginação já lhe criava um mundo novo e fértil, orientado pelas incursões ao prazer, a inocência falava de novo em seu rosto, seus olhos eram duas bolas de alegria. vai ser assim? nem uma palavra? teve todas as palavras e você não ouvia, ficou num pedestal, dizia e dizia e você se acomodou à infelicidade. Ela estava certa, sempre estava certa, na maior parte das vezes as mulheres estão certas, as palavras me escaparam, nenhuma frase para me proteger, nenhum argumento me protegia, somente meu corpo exposto aquela bomba invisível que há anos latejava em nossas vidas, mas que ali explodia e me arrancava de um mundo possível, num relâmpago o futuro se sucumbe , o desespero impaciente quer deixar sua marca, apoderar-se, ser o simbolo de uma vida espúria.
Vou á cozinha, abro a geladeira, e vejo que ela fez uma torta, há muitos anos ela não fazia uma torta, de morango, viva e alegre como seus olhos naquele momento, assim, a cozinha lembrava a cozinha de uma casa funcional, limpa, arejada, com os panos de pratos devidamente estendido, as panelas brilhando, a torta se exibindo como uma estérica de batom e unhas pintadas de vermelha, abri uma cerveja, e de novo voltei à sala, ela falava freneticamente ao telefone, não sabia com quem, pela janela a noite cuspia na rua seu incenso de desejo e volúpia, minha mente viajou, foi a um lugar ansiosamente desejante, com mulheres sofisticadas, de sexualidade sôfrega e aberta, imersa num único sonho: o contato mais intimo, a descoberta, os corpos, o sexo puro e simples, o futuro preterido, somente o momento feito de suor e líquidos. Uma vodka, o coração, o pulso das coisas que não se dão asas, a mesa onde fumava uma fêmea imaginada, a liberdade se abrindo como um mar de sal e abraços naquele salão, os andares, o cheiro, o gosto de verdade e sonho, intrincado num flutuante transe, onde tudo se amontoava no corpo e nos punha um presente na mesma medida em que nos impunha a impossibilidade de tudo abarcar.
A respiração curta, a memória a mil, vomitando lembranças que brigavam pelo protagonismo. Retorno a mim mesmo, ou pelo menos, o que acho que seja eu, e vejo seu corpo estendido no sofá, tão linda, tão aberta, lembra outros tempos quando acreditávamos que era possível, ela conversa comigo como se não fosse embora, como se não tivesse acabado, fala de planos, de viagens, dos momentos interessante, dos quais já me colocava de fora, e meu coração se abriu e tudo de tédio e prisão que eu via naquela criatura afastou-se, eu a amava mais do que nunca, a sua voz era harmônica e seus poros se pronunciavam como se recebessem carícias e eu a escutava e o momento se repartia em muitas evocações vitais e já distantes , e bebi-a inteira com os olhos, sem máscara ou segredo, alguns minutos que provaram os motivos de eu ter ficado tanto tempo com ela, era isso, a beleza cativante do inalcançável, por isso sempre torturante, sempre agonia, abismo que não se preza a interpretações, que não se vende barato.
No dia seguinte, escovava os dentes, enquanto seu perfume lhe apontava sua importância, a casa incendiada de aromas e a saudade que já aperta a garganta, ela se arrumava, salto, batom, a roupa mais leve e colorida, a pele alva e clemente, o sol lá fora estralando os cacos das coisas nos meus sentidos, ela me deu a mão, depois um abraço, saiu pela porta, resoluta e absoluta, nenhuma hesitação no seu andar, na forma como encarava o futuro ou o chão que lhe esperava . Sabia que haveria fantasmas, sabia que haveria medo, mas também sabia que haveria esperança, porque sempre existe esperança quando se rompe com um estado de coisas.